sexta-feira, 12 de outubro de 2007

[CONTO] Aula de vôo

(Texto originalmente escrito em 12/08/2006)



Estava sentado dentro de uma caverna, recostado sobre sua parede de rocha enegrecida. Ali era fresco, um tanto úmido pelo local onde se encontrava. Não era muito profunda, devia ter no máximo uns oito metros até seu fim, três de altura e uns quatro de largura. Estava sentado bem na metade do caminho até o fundo. As gotículas d'água chegavam até mim, refrescando meu corpo. Traziam com elas uma energia revigorante, além de serem um convite da cachoeira para que eu desfrutasse dela mais uma vez.

Sim, a entrada da caverna era fechada por uma queda d'água. O seu som constante me agradava, assim como o aspecto da luz que passava através do espesso manto líquido, que dava à caverna um ar menos soturno, quase mágico. O reflexo sobre as paredes, o teto e o chão, semelhante a veias, pulsava em ressonância com o fluir das águas translúcidas.

Levantei-me, fui caminhando calmamente em direção à cortina viva. As gotículas aumentavam em número conforme eu me aproximava. Fechei os olhos e me entreguei completamente à força aquática que me atraira para fora. O impacto não me chocou como da primeira vez. Já havia me habituado com sua força. O segredo para não perder o equilíbrio diante de tamanha energia corrente era um só: acompanhar seu fluir, se integrar a ele.

Assim, a água caia sobre minha cabeça, escorria pelo meu rosto, e prosseguia seu trajeto por meu corpo abaixo, não me molhava apenas, me dava a chance de ser parte dela, de vislumbrar trechos dos caminhos que percorrera, e dos que ainda iria percorrer, os seres que ainda iriam viver nela, os que dela dependiam para saciar sua sede, as plantas que cresceriam graças a ela. Enfim, naquele instante eu era parte de sua história presente e futura.

Saciada minha sede de fluir, dei alguns passos adiante, saindo de minha câmara aquática, e entrando no rio que provinha dela. Águas cristalinas corriam sobre rochas cinzas e esverdeadas, facilmente vistas através da camada ondulante e transparente, tamanha sua pureza. Senti-me um pouco indigno de estar ali, e receoso dos efeitos que minha presença teriam sobre algo de essência tão límpida. Mas logo minha consciência ofereceu-me um consolo, e disse que ali me encontrava certamente por meu próprio merecimento.

Relaxei meu corpo e deixei que a água passasse por ele sem oferecer muita resistência. Aos poucos ia me sentindo mais leve. Abri meus braços e me permiti deitar sobre a superfície do rio. Deixei que me levasse por alguns metros, com os ouvidos ainda mergulhados, usufruindo do silêncio borbulhante que somente lugares assim podem nos oferecer quando nos entregamos a eles. Lá em cima as nuvens me acompanhavam, sempre elas, que jamais cansam de olhar.

Mas o passeio foi curto, durando não mais que alguns minutos. Senti que deveria interrompê-lo em um determinado trecho, e assim o fiz. Fui nadando até a margem direita, que era coberta por grama de um verde vivo, e lá me sentei. Não abandonei totalmente o rio que tão bem me conduziu até ali, pois mantive meus pés descalços mergulhados na correnteza, ainda ligado a seus futuros caminhos.

Diante de mim, na margem oposta, existia uma floresta. Logo em sua entrada já ia se adensando. Árvores altas, de variadas espécies, formavam uma parede de inumeráveis tons de verde. Não muito tempo depois de começar a observá-la surgiu de sua entrada algumas borboletas voando aleatoriamente. Eram de muitas cores: azuis, amarelas, laranjas, lilases, algumas vermelhas e pretas. Segui com os olhos um grupo que subiu para além da altura das árvores. Ao fundo, contrastando com o céu, podia ver pássaros voando na direção da floresta. O sol estava logo à esquerda deles. Fechei os olhos, e virei meu rosto em sua direção.

Tudo que via agora era o rosa avermelhado das minhas pálpebras iluminadas pelos raios do sol, enquanto seu calor evaporava a água que ainda cobria meu corpo. Não demorou muito para que eu me secasse.

Quando novamente baixei meu rosto, posicionando-o de frente para a floresta, e abri meus olhos, minha visão foi retornando aos poucos. Inicialmente tudo era muito claro, envolvido por uma luz intensa. Aos poucos o ambiente voltou ao seu aspecto original, e o que antes enxergava turvo agora adquiria nitidez.

Enquanto minha visão retornava, um vulto na entrada da floresta chamou minha atenção. No início não podia enxergá-lo com clareza, mas logo seus contornos foram se definindo. Era uma mulher, vestida de um rosa bem claro, quase branco. Quando sua imagem se tornou mais nítida pude ver que usava uma calça larga, e uma blusa de tecido leve e esvoaçante. Estava descalça também. Tinha um cabelo liso, ligeiramente curto, batendo nos ombros, de um tom marrom-avermelhado. Olhos grandes, um tanto curiosos, que olhavam pra mim. Um sorriso tímido, meio "sem jeito", precedeu sua primeira frase:

- Tá fazendo o que aí? - perguntou, elevando um pouco o tom de sua voz para que ela conseguisse chegar até a margem onde eu estava sentado.
- Descansando um pouco - respondi no mesmo volume - e me secando.
- Daqui você me parece bem seco... - observou - ...exceto pelos pés - completou, apontando para eles.
- É, você tem razão - disse eu, levantando-me em seguida - Mas a parte difícil já passou.
- Qual parte?
- As roupas! - e estiquei parte da minha camiseta na direção dela, exibindo-a - Demoram mais pra secar.
- Ah sim! - concordou, sem saber muito bem o que dizer.
- Eu vou até aí! Assim podemos conversar melhor, sem toda essa gritaria.
- Seria ótimo, mas..!
- Mas..?
- Você acabou de secar-se! Vai entrar na água de novo?
- Não é bem nisso que eu pensei.
- E como você pensa em vir até aqui?!
- Assim!

Pra começar eu estendi meus braços para os lados, juntei meus pés, tomei um fôlego, e me ergui do chão. Ela, do outro lado do rio, pareceu se surpreender, e se surpreendeu ainda mais quando passei a atravessar o rio, flutuando sobre ele sem tocar suas águas uma vez sequer.

Meus pés ainda estavam um pouco molhados. Algumas gotas ainda pingavam deles, como se quisessem voltar para o rio de onde vieram. Aliás, era uma visão interessante aquela: ver o rio do alto, fluindo sob mim, emanando um frescor energético que, de certa forma, parecia contribuir para que eu me mantivesse no ar.

A travessia flutuante não durou mais que alguns segundos. Na outra margem fui recebido por ela, ainda boqueaberta.

- Como fez isto?! - perguntou, depois de sair de seu estado semi-hipnótico.
- Não sei. Eu simplesmente... voei!
- Isto eu sei, né? Quero saber como!
- É um pouco difícil de explicar... - comecei, ainda procurando as palavras certas - Foi como... soltar um balão!
- Um balão?
- É, como se meu corpo ficasse mais leve.
- E o que você fez pra ele ficar assim?
- Parei de pensar nele como um corpo.
- Não entendi.
- Eu disse que era difícil explicar!!
- Tudo bem. Mas tente!
- Tá legal... Me dê sua mão! - e estendi a minha pra ela.
- O que vai fazer? - indagou, oferecendo a sua, com uma curiosidade receosa.
- Você não quer aprender a fazer? - minha mão direita envolveu a sua esquerda, com a delicadeza que ela a entregou pra mim.
- Vai mesmo me ensinar a voar? - ela mal deu conta de conter o entusiasmo.
- Sim, qual é o problema?
- Mas você não me disse que não sabe como fez?
- Na hora não. Mas agora eu entendi.
- Tão rápido assim?
- A ficha demora um pouco a cair pra mim.
- Engraçado você falar em ficha em um lugar assim.
- Por quê?!
- Estamos em uma floresta, longe de qualquer sinal de civilização - me esclareceu, olhando pra mim como se olha uma pessoa ao dizer algo bem óbvio. Claro que no caso dela, com aqueles lindos olhos castanhos, eu não me importei tanto.
- Ah sim! Você tem razão!
- Nos desviamos do assunto.
- Sim, sim. Me desculpe! - disse eu, tão "sem jeito" quanto seu sorriso de momentos atrás.
- Tudo bem - respondeu, provavelmente achando engraçado o jeito com que eu disse aquilo.
- Bom, você já observou um pássaro antes de levantar vôo?
- Sim.
- Pode me descrever o que eles fazem?
- Olha, geralmente eles dão um pulinho, começam a bater as asas, e já saem voando.
- Sim - e a olhei nos olhos sem dizer mais nada.
- Que foi?! - e me encarou desconfiada - Tá querendo que eu dê um pulinho e comece a bater meus braços?
- O quê?! Hahahaha! Você achou mesmo que eu ia te pedir isto?!
- Não, mas você só disse "sim" e ficou me encarando.
- Ah, desculpa. É que eu não sabia o que dizer.
- Se você usou os pássaros como exemplo, pensei que era pra ajudar a explicar a lição.
- Era, mas eu me perdi.
- Pra alguém que acabou de atravessar um rio voando, isto não é tão estranho assim - observou sorrindo.
- Não, é que... - não consegui terminar a frase enquanto olhava pra ela.
- Deixa eu adivinhar! Você quis me dizer que é tão fácil como aquilo que os pássaros fazem pra voar, certo? Que só precisa de um pouco de impulso, e o resto sai naturalmente. Não é?
- Isto! Isto mesmo! - concordei totalmente com ela, impressionado pela facilidade com que interpretou o que eu queria dizer - Nossa, eu tô me saindo um péssimo professor.
- Nós aprendemos juntos - e mais uma vez me deu de presente aquele lindo sorriso.

Na hora, pra variar, eu não soube o que dizer. E quando finalmente encontrei algumas palavras, me agarrei a elas e comecei:

- Nós estamos condicionados a achar que não somos capazes de fazer certas coisas, graças às leis físicas que regem nosso mundo.
- A gravidade, por exemplo?
- Sim, isto mesmo. - respondi, ainda surpreso com a rapidez de suas deduções - Entre outras - completei, procurando me manter no papel de professor.
- Mas é a gravidade que mantém nossos pés no chão.
- Exatamente! Acontece que, no lugar onde estamos, essas leis não importam tanto. Elas só funcionam se deixamos nosso condicionamento atuar sobre nossos pensamentos, e fazer com que eles ajam sobre nosso corpo, e o corpo sobre eles, lhes impondo limites.
- Entendi. Você quer que eu "abra minha mente", não é?
- Er... é basicamente isto. Pra começar, feche os olhos e respire fundo.

Ela obedeceu a instrução.

- Isto. Sinta o ar te invadindo. Esqueça que tem pulmões. Esqueça que tem um corpo. Pense em si mesma como um balão se enchendo de ar, ficando mais leve, mais leve...

Aos poucos percebi que ela já estava se sentindo suficientemente leve.

- Estenda os braços - disse eu, puxando de leve sua mão esquerda, que fiquei esse tempo todo segurando - Isto! Imagine uma energia fluindo por todo o seu ser, como as águas do rio à nossa frente. Visualize em sua mente ela circulando por você. Conseque senti-la?
- Sim... - respondeu, imprimindo em sua voz uma serenidade que transmitia muita paz.
- Muito bem, agora imagine essa energia se dirigindo aos seus pés. Sinta o impulso que ela gera ao fazer isto. Sinta ela te empurrando levemente para o alto, com facilidade, como se você fosse uma pluma erguida por uma brisa repentina.

Ela permanecia de olhos fechados. Seu semblante era extremamente calmo, de uma passividade contagiante.

- Consegue sentir-se mais leve? - continuei.
- Sim... Como uma pluma mesmo...
- Ainda sente o chão?
- Não. Só uma brisa, correndo sob os pés.
- Muito bem. Abra os olhos, lentamente.

E assim ela fez.

- Olhe para o rio. Observe o fluxo das águas.

Ela o observou, ainda muito calma.

- Olhe para os seus pés - e assim o fez.
- Oh meu Deus!! - disse, incontida em sua alegria - Eu tô flutuando! Eles.... eles estão sobre o chão! - e enquanto falava movia seus lindos pés, como que para confirmar se realmente estavam livres do chão - Como eu fiz isto?!
- Ah, agora espero que tenha entendido porque eu não soube te explicar naquela hora!
- É, agora entendi - admitiu, dando mais um de seus belos sorrisos - Mas, isso é fantástico!
- Eu sei que é - concordei sorrindo.
- Só queria entender como.
- E isto realmente importa?
- Bom... na verdade não.
- Então que tal uma volta sobre a floresta?
- Seria ótimo!
- Olha só! Tem alguns pássaros voando pra ela agora mesmo! - disse, apontando-os no céu - É só segui-los, afinal, eles têm mais experiência nisso do que nós. Devem saber pra onde vão.
- Tem razão - e novamente sorriu, agora daquele jeito "sem jeito" que me deixava ainda mais tímido que ela.
- E aí, o que estamos esperando?
- Você me ensinar a sair do lugar.
- Tsc... É, eu sou um péssimo professor...

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Comentários:

interessante é que sempre tem algo com agua nos teus textos o.o cara, tu sonha com essas coisas? :D já sentiu algo parecido com isso? sentir o ar te invadindo? :D todos os dias pela manhã, eu levo a minha irma na escola e na volta, é surpreendente sentir o vento tocar a ponta dos seus dedos *-* infelizmente, flutuar eu deixo só pros sonhos --' que pena hein. xD

heluza. | 04-11-2007 01:08:20
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Wolv de volta!! Cara, vc ja pensou em escrever uns contos ou fanfics pra outros sites? abração

Leo Spy | 21-10-2007 09:14:35

terça-feira, 9 de outubro de 2007

[CONTO] Ela e o mar

(texto originalmente escrito em 09/08/2006, com alterações feitas em 09/10/2007)

Vejo-me sentado na areia fina de uma praia deserta. Uso uma camiseta branca bem confortável, e uma bermuda bem larga (não me importo muito com a cor dela). Os pés descalços sentindo o calor aconchegante que a areia absorvera do sol, que mantém seus raios em uma temperatura agradável.

Fico sentado de início, observando as nuvens no céu. Aprecio muito a visão daqueles enormes aglomerados brancos de gotículas d'água desafiando a gravidade e decorando o fundo azul sob o qual deslizam elegantemente. Diante de mim há um mar de ondas suaves, cujo ruído chama minha atenção.

Fico observando as ondulações da água por algum tempo, procurando experimentar o som de cada porção empurrando uma a outra. Estou ficando relaxado com o barulho... O quê?! Sinto uma presença atrás de mim..!

Não olho pra trás, mas ouço seus leves e tranqüilos passos sobre a areia, se aproximando calma e lentamente. Pousou as mãos sobre meus ombros.

- Por que um mar dessa vez? - é a voz dela.
- Até pensei em me imaginar no tradicional gramado, onde costumo ficar deitado observando as nuvens, mas me lembrei que também me acalma o som do mar.
- E por que estou aqui? - ainda permanece de pé atrás de mim.
- Você também me tranquiliza quando está por perto.
- Mesmo que ainda não tenhamos nos encontrado pessoalmente?
- Sim. Ou melhor... não exatamente.
- Como assim? - agachou-se, aproximando seu rosto do meu.
- Eu sempre procuro me encontrar com você, mesmo com a distância que nos separa - viro o meu na direção do rosto dela, que agora o mantém deitado sobre o meu ombro.
- Imaginando nossos encontros, né? - ela sorri como só ela consegue.
- Também. Mas não é só imaginação! Sinto sua presença quando imagino nós dois juntos.
- Pelo nosso vínculo?
- Sim, acho que ele nos ajuda a sentir mais intensamente a presença um do outro. Às vezes tenho até a impressão de que posso tocá-la, bastando que eu estenda minha mão em direção ao vazio ilusório que tenta nos convencer de que nos mantém separados.
- Não seria o oposto? - cruzou seus braços em torno do meu pescoço, em um carinhoso abraço.
- Que oposto?
- A ilusão não seria minha presença?
- Não, você não é uma ilusão! Não se toca uma ilusão! Eu não conseguiria sentir o calor do seu corpo. A textura da pele de sua mão.
- Minha mão? - estendeu seu braço adiante, exibindo sua delicada mão direita aos meus olhos.
- Sim. Já segurei sua mão. Já deslizei a minha sobre o seu rosto. Senti a suavidade dele.
- Mesmo? - ela desliza sua bochecha macia sobre a minha.
- Já senti o cheiro dos seus cabelos. Até ousei tocar seus lábios com os meus! Senti o toque do seu corpo no meu, em um abraço terno, que às vezes desejo que seja eterno.
- Você não parece relaxado agora. Já se esqueceu do mar?

Agora olho aquele imenso horizonte líquido com indiferença.

- Que graça ele tem com você por perto?
- E se a gente mergulhasse juntos? - seu abraço se torna mais forte.
- É, até que assim ele voltaria a ser útil.
- Mas isso não o relaxaria pra você finalmente cair no sono. Não foi por isto que começou a imaginar tudo isto?
- Já estou no sonho que pretendia ter.
- E a frase que tentava recordar quando começou a nos imaginar aqui?
- Uma hora ela reaparece, caso seja realmente importante que eu a passe adiante. Se preciso for, ela encontrará outro instrumento para que se manifeste.
- Tudo bem. - levantou-se e caminhou até ficar de frente pra mim - Vamos? - estendeu suas mãos, com aquele lindo sorriso no rosto.
- Sim, o mar nos espera - agarro as dela com as minhas e, desejando que elas se fundam, corremos até o infinito mar de sonhos a realizar.

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Comentários:

há. já fiz isso, imaginar um lugar bem real. mas não tinha praia, não tinha areia e nem mar. ainda prefiro os meus lugares frios *-* e e e e com muito vento.

heluza. | 04-11-2007 00:54:13