domingo, 23 de dezembro de 2007

[CONTO] Colossais Testemunhos

(texto originalmente escrito em 24/07/2007)

Giant de Maikarant

"Eu acordei com os estrondos. Olhei pros lados, assustado, sem saber direito onde estava... Sabe, aquela sensação que sempre nos dá quando alguém acorda a gente no meio de um sonho bom? Então... Onde eu estava mesmo? Ah sim, eu ouvi os estrondos, e eles pareciam ficar cada vez mais próximos..."


"Óia mininu, vô ti dizê uma coisa, fazia tempu qui eu num pegava tantu que nem naqueli dia! Era cada um DÊSSI tamanhu! Si num fôssi aquela confusão toda, ieu saía di lá cum u armoçu i a janta da semana interinha garantida. Mais daí cumeçô as xacuaiada na terra, i us pêxe si assustaro tudo! Daí num tevi jeitu, tivi qui ficá satisfeitu cum u qui eu já tinha pêgu..."


"Sim sinhô, eu tava andanu muntadu nu meu cavalu Faísca, quandu ouvi o primêru barulhu. Olha, na hora eu pensei qui fosse um raiu avisanu qui tava cheganu chuva, mais daí eu oiei pru céu i tava tudu crarinhu, quasi sem nuvém... Quandu veiu u segundu barulhu, u Faísca ficô todu agitadu, daí eu fiquei mais preocupadu..."


"Eu tava bincanu cu a Maiazinha di iscondi-iscondi na foesta. Eu tava iscundida atáis da avoí quandu veiu u bauião... Aí eu comecei a xoá, i a Maiazinha veiu coênu e mi pegô nu colu e coeu pá cavelna..."


"Rapaz, eu corri demais naquele dia! Com muita sorte só tropecei umas duas vezes, mas consegui me levantar a tempo de fugir daquilo. Mas teve uma hora que eu me gelei todo! Olha só, fico arrepiado só de me lembrar!"


"É, a água da lagoa saculejava todinha! Nunca na minha vida qui Deus á di tirá eu vi um trem qui nem aquêli! Nessa hora us barulhão tava pertinhu. Até as árvre tremia!"


"Ah, eu nem tive tempo de raciocinar direito! Levantei correndo da cama, quase caindo, porque os meus pés se enroscaram no lençol, e fui direto pra janela da sala de estar pra descobrir o que estava acontecendo..."


"Foi a hora que a sombra daquela coisa me cobriu! Durou pouca coisa, só uns segundos, mas, rapaz, aquilo só não me fez cair duro ali naquele monte de folhas secas porque minha adrenalina tava a mil! Só sei que eu nem olhei pra trás. A única coisa que eu pensava era: Corre, não pára de correr, só corre!"


"Daí uma delas caiu! I dispois ôtra, i ôtra! Nu cumeçu só deu pra vê as árvre caínu, pusquê a lagoa ficava meio longe, sabe, mais eu ispixei mais os óio, i deu pra vê a coisa direitinhu impurrano uma delas."


"Quandu eu ouvi us barulhu, que fazia até u chãu tremê, eu fiquei disisperada! Eu tinha acabadu de terminá a contagem, e não sabia onde a Tianinha tava iscundida! Sorte nossa qui ela cumeçô a chorá, sinão eu num tinha incontradu dela nu meio daqueli monte de árvure. Foi eu pegá ela e já saí correnô pra dentro da caverna."


"Sim, eu cheguei a passar pela casa, mas como parecia não ter ninguém, eu segui em frente, e fôsse o que Deus quisesse..."


"Eu vi o homem passar correndo ne frente da casa! Ele parecia amedrontado. Mal deu tempo de imaginar do que ele fugia tão desesperadamente, quando ouvi o último estrondo, e senti o último tremor de terra, muito forte, muito próximo dali..."


"Foi intãu qui u Faísca impinou, perdeu u iquilíbriu cum a tremura du chãu, e caiu. Daí, já viu, né, me isburraxei nu chãu. Foi nessa ora qui eu ouvi uns passo ligêro ficano mais perto, e di repenti passô um sujeito correno na minha frente..."


"Qué dizê, eu só vi as perna do bichu, qui nem parecia muitu cum bichu, afinal, tava usano até carça e sapatu..."


"Tava eu lá, isparramadu nu chãu de foia sêca feitu uma perereca tomanu sol, quandu, lógu dispois du sujeitu passá, fez aquele "TUUUUUMM", tremeu tudo, e apareceu aquele baita pézão na minha frente..!"


"Tinha o tamanho dum caminhão! A Tianinha tava tão assustada qui nem viu na óra qui êli passou na frente da caverna..."


"É, daí o pé sumiu, tão di repenti comu apariceu, i eu reparei na caverna logu adianti..."


"Aham, o moçu tava caído du ôtru ladu. Eu fiquei preocupada! Pensei qui êli tava machucadu. Mais daí ele começô a levantá..."


"Minhas perna trimia feitu vara verde, mais as minina trimia mais lá dentru. Tamém, quem é qui num ia ficá daqueli jeitu venu um negócio daqueli?"


"Sim, eu reparei quando ele parou. Quer dizer, na hora eu nem sabia que era um 'ele', afinal, nem olhei pra trás enquanto corria. Foi quando eu vi ele se abaixando que comecei a ficar novamente preocupado..."


"Primeiro eu ouvi um barulho que parecia uma lona bem grossa se dobrando e roçando em alguma coisa. Logo depois veio a batida abrupta, que arrebentou a parede da sala de estar. Nem perdi tempo pra olhar o que era, já saí correndo pros fundos de casa..."


"Óia, pensânu bem... É, eu ouvi o sujeitu correnu na froresta sim. Mais na hora nem oiei pra tráis. Tava quasi terminanu di pegá a tilápia caprixada qui tinha ficadu presa no anzór, daí já viu, né? (...) Sim, isso foi poquinhu antis das pernôna aparicê dirrubanu as árvre. Ah, mais ieu num disisti não! Cum pernôna ou sem pernôna, ieu tinha qui pegá aquela última tilápia di quarqué jeitu! Quem mandô num dá um jeitu de fugi cum as companhera dela quandu tevi a chanci?"


"U môçu tirô nóis duas da caverna, e pôis a genti in cima du cavalu deli..."


"Pois é, pra nossa sorte, u Faísca tava bem. Foi só um sustu mesmo..."


"Foi diveltido andá nu cavain-u!"


"Quando eu tava guardanu a tilapia na cesta eu vi o Zé passanu a cavalu carreganu as minina. Tava ínu prus lado di ondi veio o gigante..."


"Mas dos fundos vieram mais estrondos das paredes se quebrando, então eu fiquei sem saber o que fazer! Acabei voltando pra sala mesmo, e lá encontrei um negócio grande e redondo atravessado no buraco aberto da parede. De repente a casa inteira começou a tremer, as paredes foram rachando de fora-a-fora, até que começaram a subir! Foi tudo junto, teto, paredes, como se a casa inteira fosse uma caixa de sapatos..!"


"Ele tava arrancando a parte de cima da casa inteirinha! A cena foi impressionante. Não conseguia mover um dedo naquela hora."


"Eu nem conseguia imaginar o que estava acontecendo! De repente começou a chover tijolos, pedaços de reboco e cimento. O cano que saía da caixa d'água estourou enquanto o teto era arrancado e encharcou tudo. Misturou poeira com água, com medo, com suor frio..."


"Até essa hora eu nem sabia que tinha um cara lá dentro. E mesmo se eu soubesse, acho que nem seria capaz de fazer alguma coisa pelo infeliz..."


"Em seguida o sol bateu forte no meu rosto, eu fiquei cego por alguns instantes, e logo depois eu me deparei com..."


"Ele tava agachado, ainda segurando o teto da casa. Eu não sabia se saía correndo dali logo, ou se esperava pra ver o que ele olhava com tanta..."


"Tinha uma certa curiosidade nos olhos dele... Sabe, apesar do tamanho, e do estrago que fez na casa, ele não parecia perigoso..."


"Foi nessa hora que eu notei que ele se vestia muito bem pra altura dele. A calça e a camisa de mangas longas eram feitas de vários retalhos de couro de gado. Pelo tamanho das botas, deviam ser um punhado de peles de urso muito bem costuradas com umas cordas grossas. O colete, muito bonito por sinal, também parecia ser de pele. Fico só imaginando quantos animais ele precisou matar pra fazer aquilo tudo..."


"Sim, o estilo das roupas era de um típico caçador acostumado a viver nas montanhas próximas daqui da floresta. Claro que, na hora, assustado do jeito que eu estava lá dentro, nem cheguei a pensar nisto. Meu instinto só gritava pra eu dar um jeito de sair correndo dali, mas, paradoxalmente, minha intuição só pedia pra eu me acalmar e não fazer nenhum movimento brusco a fim de não assustá-lo e, assim, não correr o risco d'ele derrubar o telhado com as paredes bem em cima de mim. Sim, porque ele ainda mantinha o topo da casa erguido na mão direita, e se eu de repente fizesse algo que o assustasse, vai saber se ele não iria largar tudo ali mesmo, despencando metade da casa sobre a minha cabeça."


"Por uns instantes eu pensei que, talvez, se eu não tivesse perdido minha espingarda no meio da correria, eu teria atirado nele. Sabe, coisa de caçador. Quando vê uma presa maior distraída já embesta de começar a imaginar a fama que ganharia caso conseguisse derrubá-la. Mas daí eu lembrei que foi justamente ela que começou aquilo tudo..."


"Sei lá de onde que eu tirei coragem pra fazer aquilo! Na verdade nem sei se era bem coragem, estava mais pra um medo controlado, ou mesmo um desejo de assumir algum controle sobre a situação, mesmo que pouco. Mas, o que importa no final das contas é que eu fiz. Ergui minha mão trêmula, e disse: 'Olá!'"


"Maldita hora que eu persegui aquele cervo floresta adentro! Não fosse o tiro a esmo, e teria poupado o rapaz do prejuízo que levou... Foi justamente na hora que eu tava recapitulando a caçada fracassada que ouvi uma vozinha de dentro da casa destruída..."


"Ele não respondeu nada, só sorriu pra mim..."


"... largou o teto da casa bem do lado de sua base..."


"... e foi embora na mesma direção de onde veio."


"Não sei o que ele viu em mim, mas acho que me achou simpático. Não consigo encontrar outra explicação para o que ele fez..."


"Demorou um tempinho até eu retomar meu fôlego e correr até ela pra ver se quem quer que estivesse lá dentro estava bem."


"Um minuto depois o homem que eu vi correndo minutos antes do gigante destruir minha casa entrou pelo que restou da porta da sala de estar, perguntou se estava tudo bem. Disse que..."


"'... você tem uma baita duma sorte, amigo! A propósito, prazer, meu nome é Jonas.' Claro que eu omiti toda a parte que me apontava como causador daquilo tudo..."


"Quandu eu tava vortânu pela istrada di terra, cum a cesta carregada di tilápia e pacú, us barulhão vortáru. Eu oiei pra tráis, i vi di novu as pernona dãnu aquelas passada cumpriiida pela froresta, ínu na direção pra ondi u Zé correu cum as minina. Dispois dissu nunca mais vi u pernudo."


"Eu fiquei preocupadu, né? Afinar, eu pensei qui correnu cum u Faísca i as minina nu caminhu contráriu, ieu ia iscapá du giganti mais rápidu. Mais daí us instrondu vortaru..."


"A Tianinha cumeçô a chorá di novu, é claru! A coitadinha já tava pensanu qui tinha dexadu u monstru pra tráis..."


"Eu oei pá táis i vi o pézão pisanu nu chão..."


"Foi muitu rápidu! Foi a conta du giganti dá a primêra pisada atráis di nóis cum u pé isquerdo, i lá pra adiante já tava ele pisanu cum u direito..."


"Depois as pisada fôro ficanu mais longe..."


"... i u ômi gandãu sumiu."


"Daí eu puxei as rédea du Faísca, dei meia vorta, e fômu imbora direto pra casa onde as minina morava. Nunca mais vi o giganti."


"Não, eu num vi ele di novu não! Nossa mãe proibiu a genti di brincá na floresta di novu."


"Quê?! Qui nada, mininu! Ieu lá ia dexá di pesca meus pêxe pur causa dum pernudu que resorveu passeá pela froresta?"


"Decidi construir outra casa na montanha."


"Eu até voltaria pra pegar minha espingarda como lembrança daquele dia, mas preferi não correr o risco de armar outra confusão como aquela de novo. Me contentei em guardar comigo a lembrança do maior caçador que eu já vi em toda a minha vida."


"Sem as minha tilapia com batata ieu num vivo nem mortu!"

segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

[CONTO] Dois Lagos

Two lakes de Black Sheeps

Era uma vez, numa terra distante, em um reino cujo nome perdeu-se em meio às páginas da história devoradas pelo tempo, implacável, em sua fome sem fim, uma princesa. Dela sobrou apenas sua alcunha, "A Princesa Deusa", e este conto que inicio agora, sobre sua grande descoberta, e as conseqüências desta sobre a vida de duas pessoas.

Vocês devem estar se perguntando: Mas por que ela era conhecida como "A Princesa Deusa"? Eu compreendo sua curiosidade, e já irei saciá-la. O fato é que essa princesa em particular era dona dos mais lisos e brilhantes fios de cabelo do reino sem nome, eram de um caramelo muito escuro, quase negro, que refletia a doçura de sua alma. Seus olhos, de um tom de azul brilhante jamais visto, eram como dois quasares, traçando espirais reinantes no centro de duas galáxias, adornando dois pequenos buracos negros, quase insignificantes perante aquela beleza cósmica. A maciez de sua pele ia além do mais macio dos pêssegos. Seu sorriso tinha a luminosidade do primeiro raio de sol da manhã, despontando no horizonte, inaugurando um novo dia, abrindo o caminho entre suas fofas, brancas e leves súditas, em seu lento caminhar pela abóbada celeste. Seu corpo trazia formas do mais perfeito equilíbrio, suaves, que não se sobressaiam pelo excesso, mas pela discreta e humilde distribuição das proporções. Enfim, uma beleza rara, tão rara que muitos passaram a considerá-la a filha de um deus, adotada pelo rei daquele reino, num acordo de cláusulas desconhecidas, cuja única exigência por parte da divindidade era que o monarca preservasse aquela beleza toda, sua criação mais sublime, mais encantadora e fascinante. Assim surgiu a famosa alcunha, tão famosa que foi uma das poucas informações a resistirem às presas do esfomeado tempo.

Mas, esta não é uma história apenas sobre a Princesa Deusa, ela também diz respeito a um dia muito claro, cheio de frescor e ar puro, e a fragrância de mil flores suspensa na atmosfera, sobre o farfalhar das árvores de uma floresta de grande exuberância e diversidade vegetal, e sobre um lago, sim, um pequeno lago que a princesa descobriu durante um passeio pelos arredores do reino de seu pai, quando decidiu mudar um pouco o percurso habitual, a fim de fugir da mesmice que ameaçava assombrá-la mais uma vez, e dos elogios sufocantes de ocasionais súditos que cruzassem seu caminho, sempre admirados por sua beleza.

Fugindo, talvez do medo das pessoas, que tinham receio de aproximar-se dela, intimidadas por seu lindo rosto, e suas belas formas; ou ainda de seu pai, sempre temendo por sua segurança nestes passeios que fazia sozinha, a Princesa Deusa encontrou este lago, pequeno, como já foi dito, e aproximando-se dele ajoelhou-se em sua borda, esticou pra frente seu belo rosto, a fim de contemplar-se no reflexo gerado pelas águas do lago. Para a sua surpresa, seu reflexo, tão logo surgiu na superfície, em segundos desapareceu. E pra deixá-la ainda mais surpresa, o que surgiu no espelho ondulante foi a imagem de um outro lugar, de um céu cor de vinho, e nuvens muito escuras, por onde voavam seres bem estranhos, que mais pareciam rascunhos de pássaros, tamanha a falta de capricho em seus traços. O sol era esverdeado, de uma luz muito pálida. Aquela visão deixou a Princesa Deusa não só confusa como triste. Não sabia explicar por quê, mas ela podia sentir que uma grande tristeza impregnava-se naquela paisagem diante de seus olhos. Uma tristeza profunda e densa, e ao mesmo tempo uma sensação de ausência, do tipo mais cortante, mais doloroso. E por isto, a princesa chorou, e suas lágrimas caíram sobre as águas do pequeno lago, cuja superfície ondulou sob a forma de dois círculos concêntricos, cruzando-se, formando desenhos cada vez mais expansivos e intrincados, até sumirem, mas não totalmente, pois antes disto mais lágrimas eram tristemente depositadas, reforçando o efeito ondulatório.

O que a Princesa Deusa não sabia era que aquele lago era formado por águas mágicas, e não só isto, como também que ele se aprofundava no solo da floresta, encontrando-se com um rio subterrâneo, que o alimentava. Este rio prosseguia em curvas e linhas retas, até um ponto que ninguém jamais alcançou, pois a única forma de ter acesso a ele era através do pequeno lago, e era preciso muito fôlego para prosseguir na exploração do rio, pois ele não oferecia espaço pra repor o estoque de ar. Assim, a grande e inquietante verdade, era que ninguém sabia onde aquele rio terminava.

Outro fato que a Princesa Deusa desconhecia era que, no instante em que suas primeiras lágrimas tocavam a superfície do lago, em outro lugar, próximo de um outro lago, passava um jovem. Um homem jovem, pra ser mais exato. Era magro, alto, de olhos tristes, andar lento, hesitante, postura encurvada, sobrancelhas fartas e expressivas. Usava roupas rústicas, cinzentas, camisa e calça, e um par de sapatos feitos do couro de algum animal desconhecido. Este jovem, a quem chamaremos de Olhos Tristes, na falta de um registro de seu verdadeiro nome, olhou distraidamente o lago, quando reparou que suas águas piscavam. Isto mesmo, as águas estavam piscando! Aquilo, obviamente, atraiu sua atenção. E como Olhos Tristes não tinha nada de interessante pra fazer naquele momento, resolveu dar uma olhada pra ver se descobria o que era aquilo afinal.

Para a surpresa do jovem, o que ele viu, ao ajoelhar-se diante do lago, foi o ser mais belo sobre o qual tinha dirigido seus olhos. Sua beleza e tristeza comoveram-no de tal forma que começou a chorar também. Neste instante o lago da Princesa Deusa e o de Olhos Tristes passaram a piscar sem parar, o que chamou ainda mais a atenção deles um para o outro. Os dois pararam de chorar na mesma hora, olharam-se nos olhos por breves segundos, atordoados, surpresos, assustados, e em seguida, espontaneamente, sorriram. E aquele foi o sorriso que mais apreciaram, que mais plenamente vivenciaram em suas vidas, como se suas próprias almas e corações estivessem sorrindo. E o sorriso de um foi tão contagiante para o outro que não demorou muito para começarem a rir uma risada gostosa, que pareceu torná-los mais leves, mais luminosos. O céu azul de nuvens brancas adornando a cabeça da Princesa Deus ao fundo tornou-se mais azul e branco. E o céu vinho e escuro atrás de Olhos Tristes tornou-se menos opressivo, e um pouco mais belo em sua obscuridade.

Princesa Deusa e Olhos Tristes, após chorarem e rirem juntos, e sentirem a tristeza e a alegria um do outro, sentiram uma vontade muito forte de se abraçarem, e confortarem-se, e sentirem de perto a beleza que um via no outro. Suprirem a necessidade mútua de fugirem dos mundos nos quais viviam, cada qual restritivo à sua maneira. Mas, não puderam evitar a lembrança da lenda que contavam sobre o lago, lenda esta que também existia no mundo de Olhos Tristes.

A vontade de abraçarem-se e beijarem-se, concretizando o amor que tão pouco tempo levou para germinar e espalhar suas raízes em seus corações, tornou-se uma dor incômoda e aguda em suas almas, um peso em seus estomagos, uma pressão muito forte em suas cabeças. Como iriam transpor as barreiras impostas pelo rio subterrâneo, uma viagem sem volta? Arriscariam um mergulho, confiando na força fornecida por seu intenso e repentino amor? Valia a pena arriscarem-se? Valia a pena morrerem por aquele amor tão puro, mesmo que jamais conseguissem se tocar? Suas vidas eram um preço justo?

Princesa Deusa e Olhos Tristes estavam desesperados, procurando agarrem-se em qualquer filete de esperança que surgisse diante deles. Seus corações batiam aos pulos. Havia uma inquietação insuportável no ar, como a que precede uma notícia que todos esperam, mas que ninguém quer ouvir como confirmação de suas suspeitas.

...

Eles tinham que fazer! Não importava como, mas eles tinham que se encontrar, se tocar, se amar, mesmo que por um segundo!

Ergueram-se. De pé, resolutos, despiram-se inteiramente. Ela exibindo o esplendor divino de sua beleza totalmente exposta àquela luz que só tornava cada sutileza de seus traços mais nítida. Ele exibindo seu corpo esguio, seus braços, pernas, peito e púbis cobertos por pêlos que apenas ressaltavam a brancura de sua pele virgem de sol, como a dela, porém menos aveludada. E num impulso saltaram, mergulhando nos lagos. Nadaram empregando o máximo de suas forças, procurando economizar o quanto podiam de cada porção de ar em seus pulmões. Nadaram muito, exaustivamente, fazendo curvas, desviando-se de pedras, esbarrando em algumas, cortando-se, escoriando-se, mas jamais parando. Não saberiam dizer por quanto tempo nadaram, mas num certo ponto, já não agüentavam mais.

O ar estava no fim. Seus corpos cheios de cortes, hematomas e raspões. Seus braços e pernas estavam dormentes, duros como rochas. Não conseguiam mais avançar.

Sem muito o que fazer, sem esperanças e forças, nem chorar podiam, pois tudo que tinham em si fora usado no grande combate contra as águas traiçoeiras do rio subterrâneo. Com o pouco que lhes restava, foram capazes apenas de levar suas mãos ao peito, fechar os olhos, e sentir as últimas gotas de vida serem absorvidas por aquele verdadeiro mar que os separava. Em poucos instantes, dois mundos apagaram-se. Duas chamas deixaram de existir, engolidas pela escuridão...

...

Mas, um instante é só um instante, e sempre vem acompanhado do seguinte. O tempo prossegue, os mundos jamais deixam de existir inteiramente, apenas mudam, transformam-se, evoluem para mais formas em uma metamorfose infinita. E algumas chamas que se apagam podem reacender, reascendendo sentimentos, lançando tentáculos de esperança, que se esticam o quanto podem, esroscam-se um no outro, num nó que espada alguma seria capaz de desatar, tamanho o seu hermetismo. Um nó que amarra destinos, duas almas destinadas ao amor, a tornarem-se mutuamente mais belas, e com sua beleza salvar dois mundos, unir dois mundos, fundi-los, tornando tudo um doce e eterno abraço do mundo em si mesmo, amando-se no amor de dois seres, dispostos a abarcar tudo em seu amor, e salvar a humanidade do dilúvio vindouro e purificador.

Princesa Deusa e Olhos Tristes se tocaram pela primeira vez naquele mundo de aquática magia, no ponto onde os dois lagos nasciam, onde dois mundos se tocavam intimamente, abrindo e fechando o ciclo de eterno êxtase, prazer, e amor, o maior de todos, de divinas proporções. E assim viveram, felizes... para sempre!

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Comentários:

Amém!

Wolv | 21-12-2007 19:30:17
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E que esse conto de fadas perfeito seja apenas o primeiro de uma série de outros que estão pra nascer. E que a vida torne-se um espelho dele...

Princess | 20-12-2007 16:32:56

sábado, 15 de dezembro de 2007

[CONTO] Fuga

(texto originalmente escrito em 17/07/2007)

Scape... is possible de Ivanxd

Sua surdez é densa, de uma liquidez quase sólida. Está cego também, pela espessa escuridão que o aprisiona. Ele precisa escapar, retomar seu fôlego, sua vitalidade, sua liberdade. É necessário nadar, abrir, a braçadas, caminho em meio àquela densidade obscura que logo parecerá sem fim, sem esperança. Nade, dilacere a escuridão e nade, fuja de seu horrendo abraço e nade, rasgue suas entradas, use as últimas reservas de energia, esperança e fé, e nade, pelo amor que seu deus há de ter por ti, mas não desista, continue nadando, continue, falta pouco, sabemos que falta. Você já está se sentindo mais leve, mais próximo da saída, já está na zona cinzenta, na transição, na fronteira. Ali está ela, ali, bem ali! Nade, rasgue, dilacere, arreganhe as portas. Isto! Agora respire, tome um longo e revigorante fôlego. Recarregue suas reservas, renove sua vida, renasça se for preciso. Assim! Agora abra os olhos, lentamente para que toda essa luz, todos estes estímulos não lhe ceguem. Sinta o ar, o mesmo que infla-lhe os pulmões, acariciar seu corpo. Sinta-o secar toda essa lama aos poucos. Mas não se esqueça de ver! Sim, de ver que você ainda está muito perto de seu cárcere. Você tem que sair daí! Portanto, continue andando. Não dê atenção para a enorme extensão desse lago de lama, apenas concentre-se em bater os braços e pernas, e empurrar seu exausto corpo pra fora daí, para a margem. Não importa se ela ainda está tão distante! Não importa, entende? Você está exausto, não exaurido, nem morto. Muito bem, continue! Vamos, vamos! Quase lá. Só mais algumas braçadas. Sim, talvez mais algumas dezenas, mas que diferença faz? Você está vivo, respirando, vendo, sentindo seu coração bater intensamente, acompanhando o ritmo de suas braçadas, fornecendo ao seu corpo o que ele precisa pra continuar vencendo e cortando e rasgando esse denso e extenso lamaçal de terra imunda e dejetos, toda essa merda que minutos atrás te sufocava, roubando aos poucos seu existir.

Muito bem, falta pouco. Só alguns metros agora. Opa! Sentiu isto? É terra firme embaixo de seus pés! Você já pode ficar de pé, mais um pouco e já poderá dar um pouco de descanso aos seus braços! Mas ainda não. Ainda precisa deles pra continuar varrendo a lama para os lados, tirando-a do seu caminho, liberando sua passagem para a liberdade.

Isto, agora pode descansar os braços. Mas não se esqueça das pernas. Continue arrastando-as, cortando o lamaçal. Esqueça que elas pesam quatro vezes o seu peso normal com toda essa lama impregnada em suas calças, mais a do lago lamacento, que ainda desacelera seus movimentos. Esqueça isto! Imagine tudo como um enorme pote de gelatina. Isto mesmo, gelatina! Um lago de gelatina, bem mole, bem fácil de ser cortada. E você é uma colher de metal. Ou melhor, suas pernas são duas colheres, picotando a gelatina. Viu só? Não está ficando mais leve? Como faca na manteiga.

Aí está a margem! Aí estão seus pés! Empapados em lama, é claro, como todo o seu corpo, mas agora você pode vê-los! Isto, agache-se, toque seus pés com as mãos, sinta-os, venere-os por sua força! Sim, abrace suas pernas, ame-as por seu vigor! Agora abrace-se, ame-se, por Deus, afinal, sem você, não chegaria até aí! Isto, pode chorar, derrame quantas lágrimas precisar. Você é um vencedor, afinal! Um verdadeiro vencedor. E como todo o esforçado vencedor, você merece um descanso. Um looongo descanso. Isto, deite-se, estique seus braços e pernas o máximo que puder, como se fosse receber um abraço de congratulação do mundo, um longo e caloroso abraço da vida. Entregue-se a este abraço, ao seu cansaço, a esta paz e satisfação que agora sente! Agora durma, e não tenha pressa em acordar. Amanhã um novo dia o espera. Há de fazer um belo dia! Um belíssimo dia! Um dia bom para viver, como todos os outros...

sexta-feira, 7 de dezembro de 2007

[CONTO] Espirais

(texto originalmente escrito em 15/07/2007)

Spirals de Missoblivious

Ascendentes e descendentes. A expansão e contração, do ser, do universo, da flor, da chama, do pássaro. O gasoso e o sólido. O movimento e o repouso. A vida e a morte. O retorno e a ida. A paz e o tormento. O etéreo e o material.

Árvore da vida se expande. Universo cresce. Almas são semeadas.

Buraco negro no estomago suga-me para minha densidade infinitesimal. Buraco branco vomita-me para a objetividade superficial.

A transformação, a evolução, a perfeição.

Aniquilamento e reconstrução. Fogo que exaure e se acende. Vida que vai, vida que vem.

Todos dançam em espiral! Todos a contêm. Todos a são. Todos espiralam. Todos pulsam. Todos engolem-se e vomitam-se e giram a roda perfeccionável.

A ciranda cósmica. Big Bang. A semente do início. O desabrochar exponencial.

Abrir asas, saltar, voar. Nadar no vento. Seguir sua corrente.

O afunilamento da alma. O embrião. O útero.

Vagina aberta, as portas do mundo. Novamente a luz, novamente o choro. Novamente o peito, o calor, o alimento. E vem o caos, o amadurecimento. O murchar, o desacelerar. O morrer. A sucção negra. O frio. A última dor.

E a alma ascende. A espiral floresce. A luz a alimenta. As altas vibrações sublimes. O regresso. O aprendizado. O arrependimento. O preparo. A dor da ida. A miniaturização. Buraco negro que toma. Buraco branco que dá. Expansão. Turbilhão. Vida. Viver. Espiral espiralando espiraladamente. De dentro pra fora, de fora pra dentro. Indo, vindo, prosseguindo, evoluindo. AS-CEN-DEN-DO!

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Comentários:

Filho! Jamais imaginei que voce escrevesse tão bem. Orgulho-me de tê-lo com FILHO! Meus mais respeitosos cumprimentos.

Aroldo | Email | 22-03-2008 17:51:01
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Fascinante, simplesmente incrível. Toda vez que leio algo seu sinto-me sem palavras. É de tirar o fôlego, é como começar a ler e inconscientemente prender a respirar, e só conseguir voltar a respirar ao final. Realmente surpreendente cada palavra sua. Espero sempre poder lê-las cada vez mais e mais.

Princess | 09-12-2007 23:25:27

[CONTO] A Chama

(texto originalmente escrito em 15/07/2007)

Broken Flame de Thienbao

Fecho-me na caixa do porão do prédio da cidade do estado do país do continente do mundo do sistema estelar da galáxia do universo de mim mesmo. Camada após camada, como os anéis de um carvalho, tentando esconder sua mais íntima origem. Fecho tudo isto sobre a chama. A centelha que clama por criar e participar do fluxo.

Não quero participar disto! Não quero mas não posso. A chama é mais forte. Ela não se apaga por mais que eu queira. Ela pede mais e mais. Ela consome tudo a seu alcance para que se mantenha acesa. Vai-se tudo! Carne, mundo, universo, tudo expira, tudo arde! A chama prevalece. A chama queima. A chama flameja e lambe tudo ao redor. A chama sacia sua fome de consumir-se e jamais esgotar-se.

Não quero a chama, não quero nada, ou melhor, eu o quero. Ele que me consuma, não ela. Mas não há nada. Há o tudo permeado pelas irmãs da chama. Há o grande foco de onde ela veio. O foco não deixa que ela se apague. O foco é eterno. O foco alimenta a chama, e ela se alimenta de mim. Não quero mais ser alimento! Mas, quem sabe se eu abraçá-la... Quem sabe se eu aceitá-la como uma amante, e deixar que meu amor por ela me consuma por completo..? Assim, ela terminará tudo mais rápido. Eu vou-me e a chama sobrevive, satisfeita, saciada. Apenas a chama, e seu brilho de infindável beleza.

Eu te amo, chama, até a última gota de meu ser! Abrace-me, consuma-me! Eternize-me em ti! Ardamos! Saciemos nossa sede de viver puramente..!