terça-feira, 30 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 5ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

Leia a , , e parte.

Depois de vestir-se com uma camiseta e uma calça, que Cris pegou de sua mochila, Guto subiu de volta pra cabine do caminhão. Estava bem magro agora. As roupas largas no seu corpo. "É assim que você era?" "Sim." "E agora, garoto? O que pretende fazer?" "Não sei. Acho que vou seguir o conselho da Cris. Vou tentar descobrir como posso ajudar as pessoas com isto que eu tenho." "Vai virar um super-herói agora, é? Hehehe!" "Eu só quero fazer as pessoas se sentirem bem. Fazer com que se sintam menos pesadas. Que elas chorem muito se isto fizer com que sorriam depois." Cris sorriu neste instante. Abraçou Guto com ternura. "Eu te amo, Guto." "Também te amo, Cris." "Hehehe! Hoje em dia o mundo anda tão corrido que até o amor é plantado numa manhã e nasce antes que o sol se ponha..."

Depois daquele dia decisivo na vida de Guto, Cris e Antenor, passaram-se 7 anos. O casal de adolescentes morou por um tempo com Antenor e sua esposa Sofia (o filho deles, Felipe, fazia faculdade em uma cidade maior). Cris arrumou um emprego como vendedora de uma loja de roupas, e Guto como empacotador de um supermercado. Eram tratados como filhos pelo caminhoneiro, e foram apresentados como sobrinhos dele, filhos de um irmão de Sofia que vivia afastado da família, e que incumbiu-os de cuidar dos dois. Não durou nem um ano a farsa, pois Guto e Cris não conseguiam conter seus desejos e sentimentos um pelo outro. Antenor confessou que havia mentido, e passou a dizer que eram adolescentes órfãos que ele e a esposa resolveram adotar. Como a cidade era pequena, e Antenor gozava de ótima reputação na comunidade, jamais o importunaram com questões legais.

3 anos depois de chegarem, Guto se tornou caixa do supermercado e Cris acabou promovida a gerente, tamanha sua eficiência como vendedora. Alugaram uma casa. Guto ficou noivo de Cris um ano depois. Nove meses se passaram e nasceu Sueli, que ganhou o nome da tia falecida de Cris. Pro alívio de Guto, era uma criança saudável. Antenor morreu no ano seguinte num acidente. Após o enterro, Guto estava enorme. Teve que ir do cemitério direto para o lugar onde habitualmente descarregava-se: o ferro velho de Tales, amigo antigo de Antenor. Seu grito acelerou em dez vezes a oxidação dos metais, rachou ainda mais a terra seca do terreno, e com sorte não secou todos os fluidos corpóreos de um gato que fugiu segundos antes de ser pego pela onda de choque. Foi um grito e tanto aquele. Ficou meses sem visitar Sofia. Mais dois gritos semelhantes àquele e corria o risco de acabar com o negócio de Tales. "Antenor não ia gostar disto."

Uma semana antes de Sueli fazer 1 ano, Cris tornou-se sócia da loja de roupas de sua já amiga Flávia. Fizeram a melhor festa infantil de que a cidade teve notícia em décadas, segundo o entusiasmado comentário do prefeito Toledo, que tornou-se muito amigo de Guto, após algumas partidas de xadrez na casa de Antenor, quando este ainda era vivo. Aprendeu a respeitar o rapaz após ser vencido por ele em 3 partidas seguidas. Era um recorde, tendo em vista que só havia sofrido 2 derrotas de uma só pessoa, as 2 únicas, jogando contra Sofia. Depois da morte do marido ela parou de jogar com o prefeito, que acabou tendo como único adversário Guto. Graças a isto ficaram amigos, e após o aniversário de Sueli, Guto virou secretário do prefeito, quando sua antiga secretária pediu demissão, pois estava de mudança pra França, onde o filho, um médico em ascensão, havia comprado uma casa pra ela, viúva há 5 anos. O prefeito lamentou muito, pois era sua amante mais antiga, mas Rute, a secretária, amava mais o filho do que ele. E além disto, já estavam muito velhos pra essas aventuras, dizia ela insistentemente nos seus últimos encontros às escondidas no porão da prefeitura. "Essa poeira toda nunca me fez bem", dizia.

"Mas", vocês devem estar se perguntando agora, "então Guto viveu 7 anos de uma vidinha mundana, e no final não fez nada pra usar seu dom/maldição pra ajudar as pessoas?" Já chegamos lá. Em primeiro lugar, Guto, ao longo destes 7 anos, procurou ser um dos habitantes mais sociáveis daquela cidadezinha de interior que o adotara após sua fuga. Conhecia praticamente todos os seus habitantes, e fez com que tal conhecimento abrangesse as mais íntimas camadas de suas vidas. Por isto, em pouco menos de um ano já sabia da vida pública e particular de boa parte daquelas pessoas, graças aos apontamentos de Antenor e Sofia. Como Antenor sempre promovia festas em sua casa assim que voltava de suas viagens, Guto constantemente tinha a chance de conhecer um pouco melhor cada personagem daquele seu refúgio. E o emprego no supermercado como empacotador também ajudou muito, pois além de ser o único supermercado da cidade, também era a pista onde desfilavam cada um dos astros daquele microverso onde vivia. Não demorou muito para que conhecesse cada um dos clientes do estabelecimento. Alguns o convidavam para festas, reuniões de amigos, pescarias, caçadas. E quando sentia-se suficientemente a vontade com alguém, não hesitava em cumprir parte de sua missão, e saciar sua necessidade ao mesmo tempo que ajudava a pessoa. Ouvia cada lamento, cada reclamação, cada choro ou soluço contido, e abraçava, muito, quando não encontrava remédio melhor, quando não havia represa que pudesse conter cachoeiras de lágrimas doloridas e cheias de tristeza. Virou cúmplice, confessionário e confidente daquela cidadezinha inteira, e assim foi por 7 anos.

Um dia chegou em casa, beijou Sueli na bochecha, enquanto se entretia com dois bloquinhos de plástico no cercadinho. Beijou Cris nos lábios, enquanto esquentava a janta, tomou um copo de suco de laranja (estava calor), sentou-se na mesa no meio da cozinha, e disse: "Vou embora, Cris." Tudo ficou em estado de suspensão por exatos 5 segundos. "Embora? Como assim 'embora'?" "Não tenho mais o que fazer aqui. Já ajudei todos com seus problemas. O ferro-velho do Tales já não dá conta de receber tanta carga." "Guto, isto não é motivo pra ir embora. Os problemas nunca acabam, querido. Sempre surgem novos problemas todos os dias." "Eu sei, mas já não me sinto mais tão útil aqui. Sinto que já fiz o que devia ser feito. Que agora sou necessário em outro lugar." "E que lugar seria este?" "Não sei. Mas não é aqui. Não mais." "Quer fugir de novo, é isto?" "Não, só quero descobrir onde sou necessário." "E nós, Guto, como ficamos? Quer que a gente vá junto?" "Não. Eu não pediria isto a você." "Por que não?" "Porque não quero atrapalhar sua vida agora." "E você acha que não vai atrapalhar nos abandonando?!" "Não sei." "Não é isto que seu pai fez com você e sua mãe há 7 anos atrás? Não foi isto que o fez fugir de casa?" "Fugi de casa porque tinha medo do que eu era, e medo de como meus pais lidariam com isto. Agora não tenho mais medo do que sou." "Meus parabéns! Agora só falta se reconciliar com seus 'maravilhosos' pais!" "Talvez..." "E depois? Vai fazer o quê? Voltar pra eles? Acha mesmo que eles estão dispostos a aceitar você tantos anos depois?" "Não sei. Mas não pretendo voltar a morar com eles." "Ah, pelo menos sobrou um pouquinho de bom senso nessa sua cabecinha." "Por que tá falando assim comigo?" "Assim como? Como uma mulher que acaba de ouvir que o marido tá afim de largar ela e sua filha pra realizar a 'volta do filho pródigo' e depois sair pelo mundo como um salvador fajuto?" "Você sabe que eu posso ajudar as pessoas." "Aham! Eu sei! Mas será que pode fazer isto ao mesmo tempo que ajuda sua família a manter-se completa, intacta?" "Cris, eu amo você e a nossa filha! Mas você precisa entender que eu preciso fazer isto. Não nasci com este poder a toa." "Ai, que lindo! Vai, diz a frase mágica agora! 'Com grandes poderes...'" "Por que você tá fazendo isto, Cris? Por que tornar tudo tão difícil? Não foi você que me encorajou 7 anos atrás a usar meu dom pra ajudar as pessoas?" "Eu errei! Era só uma adolescente idiota apaixonada por um garoto que tinha acabado de me livrar do peso da culpa e remorso que eu sentia por ter deixado meu pai transar comigo!" "Você não deixou, e sabe disto." "Não importa! Isto passou! Foi há 7 anos! As pessoas mudam! Eu mudei, evoluí, amadureci! Tenho uma vida decente agora, uma filha! Nós nos CASAMOS, Guto! Se esqueceu deste 'pequeno' detalhe? Somos marido e mulher, 'até que a morte nos separe'!" "Eu sei, mas..." "Mas agora você tá afim de salvar o mundo! Quer que eu passe sua capa vermelha, querido? Só espera o ferro esquentar, tá?" "Cris, não precisa ser assim..." "MAS ESTÁ SENDO! Você está fazendo com que seja! Esquece aquilo que eu te disse há 7 anos, tá? É passado! Não tem mais importância! Nossa vida é esta agora! Já passou a época de corrermos atrás de sonhos juvenis, de... Delírios adolescentes! Somos adultos agora, Guto! Comporte-se como um! Pense na sua filha, que nem completou 2 anos! É isto que você quer ser? Um pai e marido ausente, como o Antenor? Lembra do quanto a Sofia chorava quando ele ia embora? Ela nunca se acostumou! O que te faz pensar que será diferente pra mim?" "..." Cris aproximou-se do marido, abraçou-lhe bem forte, beijou-lhe carinhosamente nos lábios. "Seu futuro é ao nosso lado, Guto. Sua missão é manter nossa família unida. Somos só nós três. Não subtraia um elemento tão importante de nossa equação. Eu não suportaria isto." "Tudo bem, querida. Eu fico..."

Guto não conseguiu dormir naquela madrugada inteira. Tinha a cabeça cheia de cenários, probabilidades, suposições sobre o que deixaria de fazer permanecendo ali, ao lado da esposa e da filha. Ao mesmo tempo pensava no sofrimento que causaria a ambas, o que ia contra os seus princípios. "Meu poder é justamente pra poupar as pessoas de parte do seu sofrimento. Seria injusto se eu fizesse com que as duas pessoas que mais amo sofressem por minha causa." Estava diante de um dilema: sacrificar sua família em prol da salvação de muitas pessoas, ou permanecer ao lado de Cris e Sueli, impedindo que seu poder cumprisse sua função no "plano geral do mundo."

Começou a sentir fortes dores no estomago, que a cada hora se tornavam mais intensas. O estomago pulsava. Tentava comprimi-lo, procurando uma forma de conter as dores, mas era inútil. Tudo foi se tornando mais lancinante e insuportável a cada segundo. Correu para o banheiro. Sua barriga estufou-se. Estava negra. "O que é isto?! Eu nunca fiquei assim!" Suas veias estavam estufadas também. Pulsavam perceptivelmente. O estomago agora queimava. Sentia-o muito pesado. Suava sem parar. Tentou correr pra fora de casa. "Preciso chegar ao ferro-velho do Tales!" Mas mal deu um passo. Estava tão pesado que era incapaz de sair do lugar. "Não! Não pode ser aqui! Aqui não!" Uma veia subitamente estourou, um esguicho de sangue lavou um pedaço da parede de azulejos brancos do banheiro. "Oh, meu Deus! Me faça suportar essa dor!" Era inútil, a dor aumentava a cada segundo. O inchaço na barriga borbulhava, tornava-se mais negro, tumorado. Por fim não aguentou mais, soltou um grito que soou como o uivo de um animal, ou melhor, como o guincho final de um porco sendo lentamente decaptado. Perdeu os sentidos logo depois.

Abriu os olhos. Viu azulejos amarelados, rachados, envelhecidos. Uma mancha de sangue seco. Olhou a barriga: estava murcha, seca. Levantou-se, caminhou com dificuldade até seu quarto. Ergueu o lençol pra deitar-se ao lado da esposa: no lugar dela encontrou uma múmia, pele seca sobre ossos. Julgou-se num pesadelo. Correu até o berço de Sueli. Encontrou um corpo infantil mumificado. Olhou ao redor, atrás de uma ponta solta do tecido daquela realidade absurda para que pudesse rasgá-la em mil pedaços, negá-la. Só encontrou o interruptor. A luz acendeu-se. O relógio marcava 4:15 da manhã. As paredes estavam rachadas, descascadas, manchadas. Parecia uma casa centenária (morava nela há apenas 4 anos, e fora construída um ano antes de alugá-la). As múmias ali permaneciam. Lembrou-se subitamente de uma voz masculina longínqua, dizendo em sua mente "...essa porcaria de casa mais parece uma tumba enorme com dois cadáveres esperando o dia inteiro pra me assombrar..!"

...

6h00 da manhã. Guto estava de mochila nas costas. Saiu de casa às 6h02. Às 6h11 já estava na saída da cidade. Às 6h47 um caminhoneiro caridoso lhe ofereceu uma carona. Estava 30 quilos mais gordo após ouvir do tal que estava com câncer há 7 anos. Os médicos tinham garantido apenas 2 ou 3 meses de vida pra ele na época. "Tô vivendo no lucro! Acabou que um amigo meu morreu antes de mim num acidente. O cara era a saúde em pessoa... Perdi tudo na época querendo pagar todas as minhas dívidas. 3 meses depois acabei ganhando uma grana boa na loteria. Não foi muito porque mais uns 6 ou 7 ganharam junto comigo, mas pelo menos deu pra comprar um caminhão novo e uma casa." "Você tem sorte." "É, eu diria que sim." "Mundo estranho esse..."

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In the road again.

Aélsio | Email | 30-12-2008 21:55:51

segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 4ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

Leia a , e

Prosseguiram a viagem por quase uma hora em silêncio. Cris estava emburrada. Não desviava os olhos das árvores, campos e montanhas que passavam correndo pela janela. Guto vez ou outra olhava pra ela, tinha vontade de dizer algo mas não encontrava nada. "E então, já decidiram onde vão ficar?" "Não sei. Ainda não pensei nisto." "E você, mocinha?" "Qualquer lugar longe daquele traste..." Sua voz parecia resistir à tentação de espalhar-se pelo ar da cabine do caminhão. "Como?" "Nada..." "Falta uns 100 km pra chegarmos no meu próximo trabalho. Vocês têm que decidir se continuam comigo ou se seguem seu rumo." "Até onde a gente pode ir com você?" "Depois que eu fizer essa entrega eu vou passar uns dias em casa." "A gente pode ficar com você?" "Se não encontrarem um lugar melhor..." "Sua esposa não vai se importar?" "Vocês são amigos." "Como pode ter tanta certeza?" "Ainda não tentaram me assaltar, ou roubar meu caminhão." "E se a gente estiver fingindo muito bem?" "E se eu estiver entrando no jogo de vocês, só pra ver onde dá?" "(...) Tem certeza que você não é nenhuma maníaco sexual, tipo o 'tarado do caminhão', que dá carona pra menores fugitivos pra abusar deles em seu ninho de sexo e perversão?" "De onde você tira essas idéias, mocinha?" "Dos jornais. Estão cheios de notícias assim." "Hnf! Não é a toa que eu prefiro os gibis do Felipe..."

Chegaram num armazém de café. Cris e Guto observaram por duas horas os homens carregando dezenas de sacos cheios de grãos pra fora do caminhão. Antenor apertou a mão de um sujeito um pouco mais gordo que ele. "Vamos?" Subiram na cabine, e voltaram pra estrada. "Coitado... Perdeu o filho faz 3 dias." "Quem?" "O Bastos. Aquele que tava se despedindo de mim." "Como ele morreu?" "Acidente de carro." "Minha tia, irmã da minha mãe, morreu assim também." "Triste isto." "Eu adorava ela..." "Por quê?" "Porque ela era o oposto da minha mãe. Gostava de aproveitar a vida, não se importava em largar o meu tio sozinho e sair com as amigas. Não tinha medo de apanhar dele caso fizesse isto..." "(...) Seu pai batia na sua mãe, não é?" "O Guto te contou alguma coisa?" "Eu não contei nada!" "Então como ele..?" "Foi só uma suposição, mocinha. Não sabia que era verdade. Mas já desconfiava." "E do que mais você desconfia?" "Que ele tentou te molestar." "..." Os lábios de Cris tremiam. Seus olhos foram ficando cada vez mais vermelhos, pesados pelas lágrimas que se acumulavam. Por fim começou a chorar. "Ele... não tentou... (snif) Ele conseguiu..!" E daqui não deu conta de dizer mais nada.

Guto sentiu um peso enorme no estomago, mas dessa vez comprimiu-se todo. Não houve nenhuma explosão de inchaço. No lugar, houve um gesto súbito, espontâneo. Guto abraçou fortemente Cris, e falou bem baixo no seu ouvido. "Você vai ficar bem. Chore o quanto quiser, depois você vai ficar melhor." E ela chorou, muito, com o máximo de intensidade que era capaz de imprimir naquele choro. Agarrou-se em Guto, apertou-o contra o peito, fazendo com que ele sentisse aquele palpitar frenético e descompassado de seu coração. "Eu... não queria... (snif!) Ele me forçou..." "Não foi culpa sua." "Não tive forças pra lutar..." "Você terá agora!" E Guto sentiu uma grande onda de calor sair de Cris e entrar nele. Sentiu que queimava seu estomago, tornando-o cada vez mais pesado. Mas não soltava Cris, pois sabia que ainda não terminara. "Eu me sinto suja..." "Não precisa dizer nada, Cris. Só chore, e me abrace bem forte!" E ela obedeceu. E o estomago de Guto parecia uma fornalha. Suava muito, como jamais suou em toda a sua vida. Antenor observava tudo aquilo em silêncio. Entendia que era um momento só dos dois. Apesar de compartilharem o mesmo espaço, ele sabia que ambos se sentiam em seu próprio universo. Por isto mantinha-se com os olhos atentos à estrada, procurando manter o controle do que lhe cabia controlar. De repente uma voz se fez ouvir entre a barreira dos dois universos que conviviam naquela cabine de caminhão. "Pare!" "Que foi, garoto?!" "Só encoste!!" "Tá bom, tá bom!" Encostou. Gutou largou Cris, ainda com os olhos inchados, molhados e avermelhados, porém surpresos com sua mudança repentina de atitude. Desceu da cabine e correu pro meio de um monte de árvores, atrás de punhados de mato. Seu corpo explodiu em inchaços. Ficou enorme. Sua roupa rasgou-se toda, deixando-o nu. Não conseguiu manter-se de pé, tamanha a gordura que havia ganho em poucos segundos. Sentia-se insuportavelmente pesado e gordo. Levou a mão ao coração: ele batia com dificuldade, muito lentamente, mais descompassado que o de Cris, minutos atrás. Não conseguia respirar direito, tentou dizer qualquer coisa mas não saiu nada. Deu socos no chão, ainda segurando o peito de onde suas mamas enormes pendiam.

"Guto!" Cris saltou da cabine e correu na direção dele. Guto ergueu a mão que socava o chão em sinal de "PARE!" Cris parou, hesitante. Ainda chorava, mas pouco. Estava aflita. "Grita, Guto!! Grita!!" Ele levou a mão na garganta, sinalizando que estava sufocando. "Bate no peito!" Guto bateu, soltou uma voz rouca e ininteligível. Bateu de novo, uma, duas, três vezes. Só saía sílabas desconexas. "Ai meu Deus! Ele precisa gritar!" "Vai rapaz!! Você consegue!! Bate no peito com as duas mãos!!" e gesticulou imitando um gorila. Guto repetiu o gesto de Antenor, e soltou um grito ensurdecedor. Durou um minuto inteiro. Gerou uma onda de choque e calor que jogou Cris e Antenor contra o asfalto. Ambos perderam os sentidos...

Minutos depois, quando acordaram, o céu ainda estava claro. Algumas poucas nuvens ousavam passear por aquela desolação azul, solitárias e leves. Levantaram-se quase ao mesmo tempo. Diante deles encontraram árvores secas, mato morto, o exato oposto do que viram antes do grito de Guto, que agora estava esquelético, nu, ajoelhado naquele triste cenário. Olhava pro chão, assustado, ofegante. Pegou lentamente um retalho da camiseta verde que usava, e fitou-o com um olhar distante, como se buscasse enxergar outra coisa.

Cris, ainda atordoada, correu até ele, abraçou-o. "Pronto! Já passou!" "Não... Isto é só o começo..." "A gente vai dar um jeito nisto! Você vai ver!" "Que jeito, Cris? Que jeito?! Eu só me alimento disto! E só tem um jeito de me livrar do peso sem que eu exploda." "A gente vai encontrar uma solução, Guto!" "Cris, não tem solução! Eu sou assim! Já nasci assim! Não posso fazer nada contra isto. Tentei fazer e olha o que eu provoquei! E se eu fizesse isto em uma cidade?" "Guto, olha!" Pegou o rosto dele com as duas mãos e virou-o de frente pro dela. "Você me ajudou, e agora é a minha vez de te ajudar, tá? Não discute comigo! Eu vou te ajudar com isto!" "Você não precisa fazer isto por mim." "Sim, eu preciso. Eu vou!" "Faz só um dia que nos conhecemos, Cris!" "A vida é curta, Guto. Não quero mais despediçar o tempo que me resta com lamentações. Quero viver, por aquele amigo do Antenor que tá com câncer; por você, um garoto que absorve problemas dos outros; por ele, que vê as duas pessoas que mais ama tão pouco; e por cada um que sofre neste mundo!. E se eu puder fazer algo por parte dessas pessoas, algo bom como o que acabou de fazer por mim, eu vou fazer! E você também! Você pode fazer um bem tremendo pelas pessoas! E eu vou te ajudar a descobrir isto. Eu vou te ajudar a descobrir que isto que você é capaz de fazer não é ruim! É bom!" "Você acha?" "Sim." "Mesmo que outras vidas sofram pelas que salvarmos?" "A gente dá um jeito nisto." Antenor olhava-os de longe. Trazia um leve sorriso de satisfação no rosto. "Este dois vão longe mesmo!"



(continua...)

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Se continuar assim, vai longe mesmo...

Aélsio | Email | 30-12-2008 18:48:11

domingo, 28 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 3ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

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Pra evitarem um novo incidente, decidiram permanecer em silêncio a viagem inteira. "Bom, minha 1ª parada é aqui." Estavam num posto de gasolina na entrada de uma cidade pequena. "Vai fazer o quê?" "Pegar uma grana que um amigo meu tá me devendo. Quer descer?" "Vou no banheiro. Você vem, Guto?" "Não." "Nem pra me fazer companhia? Preciso de alguém pra me defender se um tarado quiser abusar de mim." "Tá, eu vou." "He..! Vocês dois vão longe!" "Não enche, Antenor! Vai cuidar da sua vida que a gente cuida da nossa!" "Calma, mocinha! Não precisa ficar irritada." "Eu detesto quando pedem pra eu ficar calma quando já estou!" "Não é o que parece." "Que se foda o que te parece!" "Tá legal, tá legal... Fiquem a vontade. Eu parto daqui a meia hora."

Gutinho acompanhou Cris até o banheiro. "Tá trazendo a mochila junto por quê?" "Precaução." "Sei... Fica de olho se chega alguém!" "Tá." Ela fechou bruscamente a porta na cara dele. "Meu Deus! Que banheiro imundo!" Sua voz era abafada pela porta de metal. "Que foi?" "Esse banheiro tá imundo! O cheiro é horrível! Eu não vou me sentar aqui!" "Pega um tanto de papel e cobre o assento." "Não tem papel!" "Acho que eu tenho aqui na mochila." "Não precisa!" Abriu a porta, tomando um fôlego. "Nossa, que alívio! Ali eu não faço xixi!" "Vai fazer onde, então?" Cris olhou pros lados, abrangendo 180 graus da visão que tinha de onde estava. "Ali! Naquele monte de mato!" "No mato?" "Sim! Ali pelo menos não deve tá fedendo nem imundo." "Tem certeza?" "Não tenho opção! Vem comigo!" E pegou na mão de Gutinho. "Pronto! Fica aqui vendo se não chega ninguém perto. Se alguém se aproximar não deixa me ver, tá? Nem que for pra segurar o sujeito! E não ouse olhar pra trás!" "Tudo bem." "Tá. Dá aqui o papel!" Dois minutos depois Gutinho levou um susto. Alguém chegou por trás dele, pôs uma mão em seu ombro esquerdo, e o virou na sua direção. Era Cris. Encarou-o, olhou pra baixo, voltou a olhá-lo nos olhos, e o beijou na boca. "Obrigada..."

Dez minutos depois Antenor voltou. Carregava dois sanduíches de frango com tomate, alface, umas batatas fritas bem finas, e duas latas de refrigerante. "Pra vocês! Devem estar com fome." "Obrigado." "Não precisava." "O anfitrião sou eu, mocinha." "Você não nos convidou, fomos nós que pedimos carona." "Ah, não discute, tá? Eu tô feliz pela grana que recebi e quero comemorar com alguém. Fazia um tempão que o Antônio tava me devendo. Sempre me enrolava na hora da cobrança. Daí ontem, sem aviso, ele me liga, diz que tá com a grana, e que era pra eu passar aqui pra acertarmos. Disse que tava pagando todas as suas dívidas. Eu pergunto se ele tinha ganhado na loteria. Disse que tá com câncer..." "Nossa..." "Pois é. 2 meses de vida. 3 se tiver sorte." "E você acha normal isto?" "O quê?" "Ficar alegre depois de receber uma notícia dessas?" "Eu tô vivo, não tô? E até onde eu sei não tô com nenhuma doença. E o meu amigo disse que era pra aproveitar a grana por ele. Viver parte daquilo que ele vai deixar de viver. (...) Sabe como ele conseguiu a grana pra pagar todos os amigos e conhecidos a quem devia?" "Ganhou mesmo na loteria?" "Hehehe! Não. Ele vendeu o caminhão, a casa, e um pedacinho de terra que tinha comprado em algum fim de mundo por aí. Ele devia pra muita gente. Disse pra mim o mesmo que tá dizendo pra todo mundo que paga: 'Aproveita a grana que eu tô te dando com o que te resta de vida. A minha já tá nas últimas. Só falta mais uns centavos pra gastar. (...) Eu gosto muito dele, sabe? Apesar da fama de mal-pagador, ele é boa gente. Por isto achei que na verdade eu é que tô devendo pra ele. Passamos por bons momentos juntos. Isto ninguém pode comprar... (...) Ao contrário de dois sanduíches de beira de estrada pra dois esfomeados! Hehehe!" Cris sorriu pela primeira vez de algo dito por Antenor. "Isto também é outra coisa que não se compra." "O quê?" "Seu sorriso, mocinha. Devia sorrir um pouco mais! Fica mais bonita!" Ela corou-se. "Isto é algum tipo de cantada?" "Não sou dessas coisas, menina! (...) E você? Por que não tá comendo, garoto?" "Não tô com fome. E nenhuma comida me faz bem." "Você só come problema, é?" "Não, eu passei minha vida inteira comendo comida. Comia muito, mas sempre passava mal. Nada parava no meu estomago. Minha mãe dizia que eu parecia um franguinho depenado muito magro quando nasci. 'Era só pele e osso', ela dizia." "E como você sobreviveu até aqui?" "Não sei. Só comecei a engordar ontem." "E vai passar a vida inteira assim, garoto? Se alimentando dos problemas dos outros?" "Acho que não tenho opção." "Tá, mas até que ponto isto vai?" "Não entendi." "Você vai ficar engordando com problemas até estourar?" "Ele não vai estourar!" "E como ele se livra disto quando não puder engordar mais?" "Do mesmo jeito que todo mundo se livra de seus problemas: desabafando!" "(...) Sua namoradinha é bem esperta, rapaz." "Eu não sou a namoradinha dele! Nos conhecemos hoje!" "E qual é o problema nisto? Eu beijei minha esposa no primeiro dia em que nos conhecemos." "Ela também me beijou." "Hehehe!" "Você não tinha nada que contar pra ele!" "Por quê?" "Porque não!" "Não entendi." "Você entendeu muito bem! Não se faça de sonso!" "Mas eu gostei do beijo." "E alguém te perguntou isto?!" "É que você tá falando como se fosse algo ruim." "É ruim!" "Por quê?" "Porque é, tá?!" E saiu correndo pra parte de trás da carroceria do caminhão. Guto fez que ia atrás dela. "Deixa, garoto! Ela só tá fazendo charminho. No fundo ela gostou do que você disse." "Como sabe?" "Anos de experiência. (...) Não vai mesmo comer o sanduíche?" "Não." "Então dá aqui que eu guardo pra mais tarde. Ainda temos um bocado de chão pela frente." "Seu Antenor, o que ela quis dizer com 'desabafando'?" "Desabafar é quando a gente conta nossos problemas pra outra pessoa disposta a nos ouvir. Quando a gente faz isto se sente mais leve." "Então deve ser isto mesmo que eu tenho que fazer pra não estourar, né?" "Deve ser, garoto. Só testando mesmo pra ter certeza." "A Cris é inteligente." "Sim, ela é. E gosta de você." "É?" "Sim, eu detecto essas coisas no ar. Ela se importa com você, rapaz." "Eu também gosto dela." "Que bom! Isto sempre ajuda." "Ajuda?" "Aham! 'O amor só prevalece quando dois corações batem em ressonância.'" "Ressonância?" "Só uma frase que li num livro uma vez. Mais cedo ou mais tarde você vai entender, Guto. Agora vai lá chamar a menina. Já estamos de partida." "Tá."



(continua...)

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Continue...

Aélsio | Email | 30-12-2008 18:51:10

sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 2ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

Andou muito aquele dia, até chegar à rodovia de uma das saídas da cidade onde morava. Quando se aproximava de uma rotatória gramada, com algumas flores amarelas e azuis plantadas, uma voz feminina o chamou. "Tá fugindo de casa também?" Era uma garota de uns 15 ou 16 anos. Magra, cabelos loiros com mechas castanhas e avermelhadas. Olheiras profundas, bochechas encovadas. Lábios secos. Não usava maquiagem. Algumas espinhas, mas nada que escondesse certa beleza em seus traços, mesmo que maltratados. Vestia uma jaqueta jeans curta, uma camiseta preta com a frase "FUCK YOU ALL!", calça jeans preta desbotada com alguns rasgos, tênis de cano longo rosa shocking com detalhes em preto. Carregava uma mochila bem grande nas costas. "Sim." "É, deu pra adivinhar." "É?" "Não dá pra esconder uma mochila cheia e um olhar perdido." "Como o seu?" "(...) É..." "Por que está fugindo?" "Quem começou as perguntas fui eu!" "Desculpa." "Não esquenta... Eu respondo... (...) Meu pai bate na minha mãe..." "Por quê?" "Porque é um filho da puta!" "O seu também?" "Por quê? O seu também bate na sua mãe?" "Não. Mas encontrei hoje um homem que disse que o pai dele também é filho da puta." "É, o mundo tá cheio deles..." "Por quê?" "Porque o que não falta é desgraçado nesse planeta!" "Então você fugiu de casa porque seu pai bate na sua mãe." "Também..." "Tem outro motivo?" "É, tem..." "Qual?" "(...) Ele tentou me estuprar..." "Estuprar?" "É..." "O que é isto?" "Em que mundo você vive, pirralho?!" "No mesmo que o seu." "Difícil acreditar!" "Por quê?" "Porque todo mundo sabe o que é isto!" "Eu não sei." "Sorte a sua." "Mas eu quero saber!" "Estupro é quando um monstro disfarçado de ser humano quer te forçar a trepar com ele! É isto!" "Então seu pai é um monstro?" "Sim." "E você também?" "(...) É, acho que também sou..." "Não parece." "Mas sou, não só por ser filha dele, mas por largar minha mãe nas mãos nojentas daquele animal!" "Por que a largou?" "Porque a idiota gosta dele." "Como alguém pode gostar de outra pessoa que bate nela?" "He..! Boa pergunta. Ela te responderia dizendo que só ela entende o amor que sente por ele." "E o que você sente pelo seu pai?" "Nojo! Ódio! Queria que ele morresse!" "Estranho isto." "O quê?" "Uma filha querer que o pai morra. Eu não quero que o meu pai morra, mesmo que ele faça sexo com a Sônia." "Quem é Sônia?" "A moça que trabalha na mesma empresa do meu pai." "Então ele tá traindo sua mãe?" "Traindo?" "É, tá trepando com outra mulher ao invés de trepar com a sua mãe." "O que é trepar?" "Fazer sexo! Transar!" "Não sabia que pais podiam fazer isto com as filhas." "E não podem!! É por isto que tenho nojo dele!" "E por que ele fez isto?" "Ele não fez!" "Por quê?" "Porque eu não deixei! Porque eu peguei a droga do veado de bronze da minha mãe enquanto ele tentava tirar minha calça e bati com a estátua na cabeça daquele merda!" "Ele deve ter se machucado." "É o que eu espero!" "E depois, o que você fez?" "Depois eu corri pro meu quarto, enchi minha mochila de roupas, peguei toda a grana que ele tinha na carteira, e cá estou, tentando arrumar carona antes que ele acorde e descubra que estou prestes a fugir da cidade e da vida daqueles dois." "E pra onde você vai?" "Eu... (snift!) não sei..." "Eu também não."

Uma nova explosão ocorreu no estomago de Gutinho. "Que foi isto?!" "Tô engordando..!" "Engordando?" O inchaço espalhou-se pelo corpo. "Sim. Tá acontecendo desde ontem." "Mas... Como? Que negócio é esse, afinal?!" Tudo se normalizou. Gutinho estava duas vezes mais gordo que no início de sua conversa com a garota. "Eu não sei ainda. Mas tô quase descobrindo" "Ah tá... (...) Eu nunca vi nada igual!" "É, acho que não." "Quando aconteceu pela 1ª vez?" "Ontem, quando minha mãe ficou chateada comigo." "Por que ela ficou chateada com você?" "Porque eu faço meu pai gastar muito comigo, e fiz ela ficar mais feia e magra, e porque meu pai quer nos abandonar." "Sei...Deve ser... Sei lá! Psicológico!" "Por quê?" "Você deve se sentir culpado e... seu corpo reagiu assim." "É, talvez." "Leio muito sobre isto, sabe? Psicologia. Mas eu nunca vi nada igual! Talvez não seja isto. (...) Já aconteceu outras vezes?" "Só mais duas." "Quando?" "Quando meu pai disse que não aguentava mais a gente, e que por isto ia dormir no apartamento da Sônia. E quando o homem com cheiro de bebida disse que sua mãe era puta e morreu engasgada com... o que ele disse mesmo? (...) Bom, ele disse que ela morreu e deixou ele e os irmãos dele sozinhos." "Nossa... Que merda isso." "É, ele disse que a vida dele era uma merda." "É o que parece... (...) Então você engorda toda vez que ouve os problemas dos outros?" "Não sei. Mas agora que você disse, talvez seja." "Pelo menos é o que parece pra mim." "Então deve ser." "Não que eu seja dona da verdade, mas acho que vale a pena, sei lá, testar essa hipótese." "Hipótese?" "É, essa possibilidade, essa... Ah, desisto! É difícil falar com você!" "Eu gosto de falar com você." "Você acaba de me conhecer. Como pode ter tanta certeza disto?" "Eu tô gostando." "Por enquanto. Depois de um tempo você cansa." "Por quê?" "Porque eu sou cheia de problemas." "Eu também." E deu um leve tapa na pança enquanto sorria pra garota. Ela retribuiu o sorriso. "É! Você também não fica devendo. (...) Como se chama?" "Guto. E você?" "Cristina. Mas pode me chamar de Cris." "Tá. Seu nome é bonito." "Obrigada." "Você também é." "..." Corou-se.

Após dezenas de tentativas em vão, um caminhoneiro resolveu dar carona para o estranho casal de adolescentes. "São namorados?" "Não! Só... conhecidos." "Sei. (...) Tão fugindo de casa, é?" "E se for?" "Tudo bem. Não tô aqui pra julgar ninguém. (...) Posso saber o nome de vocês, pelo menos?" "Cristina." "Guto." "O meu é Antenor." "Como pode ter certeza de que não estamos dando nomes falsos?" "Eu não tenho, mocinha. Mas pelo menos agora eu posso chamar vocês de alguma coisa." "Eu gostei dele..." Cochichou para Gutinho. "Ele é legal." Cochichou para Cris. "Eu tento ser." Falou pros dois.

Cris, depois de 30 minutos de viagem, cochilou, deixando a cabeça cair sobre o ombro de Gutinho. "Ela é bonitinha." "Sim." "Você é muito quieto, garoto." "Tô com medo de engordar mais." "Engordar?! Como assim?" "Eu engordo quando ouço os problemas das pessoas." "Como?! Você se alimenta de problemas?!" "Acho que sim. Sempre me senti mal comendo comida." "Coisa mais estranha." "Eu sei. Já me disseram isto." "E com razão! (...) Se bem que eu já vi muita coisa estranha por aí afora." "O que, por exemplo?" "Ah, teve uma vez que eu fui seguido a madrugada inteira por uma bola de luz no céu." "E o que ela fez?" "Nada, só ficou me seguindo mesmo." "Não teve medo?" "Não, era só uma bola de luz. Era até bonita." "Sei." "Também já atropelei um fantasma." "Fantasma?" "Aham. Era um homem. Apareceu do nada no meio da pista. Não deu tempo de frear. Quando dei por mim já tinha passado por cima. Daí eu parei o caminhão, todo assustado, desci, e fui olhar lá atrás pra ver se eu encontrava o corpo do sujeito. Não achei nem vestígio. Olhei em tudo quanto era canto da pista e do caminhão, mas nem uma gotinha de sangue, nem um pedacinho de osso, miolo... Enfim, nada que sobrasse de alguém pego por uma jamanta naquela velocidade. Logo, era um fantasma." "Estranho mesmo." "É um mundo estranho, como diria Elijah Snow." "Quem?" "É um personagem de um gibi que o meu filho adora." "Você gosta dele?" "Do meu filho? Claro que gosto! Por que não gostaria?" "Meu pai vai abandonar eu e a minha mãe porque gasta demais comigo, e porque a gente assombra ele." "Ele te disse isto?" "Sim." "Seu pai é um cafajeste, hein?" "Cafajeste?" "É. Não dá valor pra quem vive com ele." "Ele chamou minha mãe de morta-viva." "Um verdadeiro canalha! Não sei o que aconteceu entre ele e sua mãe, mas nenhuma mulher merece ouvir isto do marido." "Ela chorou bastante quando me contou isto." "E sobre gastar dinheiro com você, o cara tava pensando o que quando resolveu ter um filho? Que continuaria vivendo numa boa, gastando o mesmo tanto que antes? Ter um filho é aprender a se sacrificar mais um pouco por quem amamos. (...) Depois que eu perdi meu emprego no banco eu me senti totalmente atordoado. Achava que não daria conta de superar aquilo, mas superei. Juntei uma grana que eu vinha economizando, pedi ajuda pro meu sogro e pra minha mãe, e comprei esse caminhão. Não podia ficar muito tempo me lamentando porque tinha um filho pra criar e uma mulher que contava comigo." "Quando foi isto?" "Uns doze anos atrás. E desde então eu viajo, fazendo entregas em todo o país. Morrendo de saudade da minha mulher e do meu filho, mas sei que o sacrifício tá valendo a pena. O Felipe tá terminando a faculdade dele graças a isto aqui, e aos salgadinhos que a minha esposa vende lá na nossa cidade. Envelhecemos um pouco mais rápido do que o normal nestes 12 anos, mas foi uma por uma boa causa." "Você já traiu sua mulher?" "(...) Você é bem... direto, hein, filho? Não, eu nunca fiz isto. Não foi por falta de oportunidade, porque por aí afora tem muita menina oferecendo o corpo em troca de carona. Isto sem contar as perdidas que ficam parasitando nos postos de gasolina de estrada, ou nos hotéis e pensões rodoviárias. Mas eu sempre procurei me manter fiel. Tenho orgulho disto. Amo muito minha Sofia pra ir atrás de qualquer bundinha bonita que aparece na minha frente." "E quando a fome aperta..?" "Ué?! Resolveu acordar, garota?" "Com a altura que vocês tão conversando você queria o quê?" "Foi mal. Tinha me esquecido." "Sem problema. Mas você não respondeu minha pergunta, 'Seu' Antenor." "Quando a 'fome' aperta eu sei me virar sozinho." "Aham... Sei." "Pra uma garota da sua idade você é bem avançadinha." "Tive um ótimo professor." "Eu imagino." "Não tente. Pode te dar enjôos." O estomago de Gutinho começou a borbulhar. "Droga! Agora não!" "Tá passando mal, garoto?!" "Ele tá engordando!" Sua barriga inchou como um balão. "Santa Mãe..! Melhor eu encostar!" O caminhão parou. Antenor e Cris ajudaram Gutinho a descer. Assim que chegou ao chão tornou-se obeso. "Cara, eu já vi coisa muito esquisita, mas isto..." "É... um mundo estranho..." "Você aprende rápido, garoto."



(continua...)

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Comentários:

Falta muito ainda pra acabar as partes desse?! Espero que não, assim vc pode colocar algo melhor por aqui! Afinal, o espaço merece!

Tati | 27-12-2008 15:34:51
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Muito bom...

Aélsio | Email | 27-12-2008 14:01:27

quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 1ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

O Homem Absorvente era um rapaz que já nasceu muito magro. Sua magreza era tanta que parecia um esqueleto coberto por uma fina camada de pele. Seus pais ficaram desesperados quando viram pela primeira vez aquela criança tão raquítica sendo carregada pela enfermeira até o lugar vago ao lado do leito da mãe, cujo rosto ainda estava muito inchado e vermelho. Nasceu de parto natural, mas nem exigiu muito esforço da parte dela para que fosse entregue ao mundo. "Foi como fazer xixi", dizia ela.

A partir de então os pais do Homem Absorvente, que na época era conhecido apenas como Gutinho, e o pediatra responsável pela saúde da criança, passaram a correr atrás do melhor tratamento para curar sua subnutrição. "Mas eu comia tanto enquanto estava grávida dele!", desesperava-se a mãe, chorando inconformada. "Vai ficar tudo bem, meu amor. Logo o Gutinho vai estar todo rechonchudo", consolava o pai.

Tentaram as mais variadas combinações de nutrientes, vitaminas, proteínas, sais minerais, carboidratos, gorduras, açúcares. Aos 3 anos Gutinho comia feito um boi, aos 5 como um filhote de elefante, aos 8 como um hipopótamo adulto, mas jamais engordava, jamais se livrava daquela magreza cadavérica.

Até que um dia, ouvindo mais uma das lamentações da mãe, Gutinho perguntou a ela: "Você tá triste por minha causa de novo, né?". A mãe o olhou e começou a despejar: "Sim, eu estou! Você não tem idéia de quanta tristeza me causou desde que nasceu! Quantas noites sem dormir, quanta dor e sofrimento! Quantas brigas eu tive com o seu pai por sua causa, quando o dinheiro acabava. Porque ele todo ia pra sua comida, sabia? Deixamos de pagar muitos aluguéis por causa da sua maldita doença! Sabe que às vezes eu acho que você faz de propósito? É sim! Às vezes eu fico pensando: 'Será que ele tá comendo mesmo? Será que ele tá mantendo a comida no estomago? Será que ele não tá vomitando tudo enquanto não prestamos atenção?' Eu já pensei seriamente em te espionar, só pra ter certeza que você não tá jogando fora tudo que come. Você não pensa em nós?! É egoísta a este ponto?! Até deixar de comer o necessário nós deixamos! Olha a minha magreza! Eu costumava ser gordinha até uns 4 anos atrás! Agora sou só pele e osso! É isto que você quer? Fazer com que todas as pessoas que se importam com você fiquem iguais a 'isto' que você é?! Sabia que seu pai tá querendo nos deixar?! É, ele não aguenta mais! Disse que já tá cansado de gastar todo o dinheiro dele com um filho que não engorda nunca e com anti-depressivos pra mulher, que virou uma 'morta-viva'! É disto que ele me chamou esses dias, de 'morta-viva'! Você... (snif!) tem noção do que é ser chamada disto... (snif!) pra uma mulher como eu... (snif!) que sempre foi vaidosa?" e por fim desabou em um choro convulsivo. Não enxergava mais nada, só uma cachoeira de lágrimas.

Gutinho, após ouvir tudo aquilo, inicialmente ficou mudo, assustado, sem ação. Em seguida achou que devia dizer algo pra fazer sua mãe se sentir melhor, mas quando ia arriscar alguma frase, ela ficou engastalhada nos últimos neurônios responsáveis por passar a mensagem do cérebro para os pulmões, as cordas vocais, língua e narinas. O motivo do engastalho foi que Gutinho sentiu uma coisa estranha dentro dele, mais especificamente no estomago. Foi como um soco vindo de dentro pra fora, ou melhor, como se largassem lá dentro um saco enorme cheio de pedras. E não foi só isto! Gutinho sentiu-se enchendo como um balão, mas não de forma leve. Achou que estava prestes a vomitar, pois fazia isto quase sempre que comia qualquer coisa (a mãe estava em parte certa em suas suspeitas), mas não porque queria, e sim porque tudo que ingeria lhe fazia mal.

Quando terminou de chegar no banheiro, e virou a fechadura, sentiu uma explosão dentro de si, que pareceu percorrer o corpo todo. Sua barriga inchou na hora, logo em seguida seus braços e pernas e bochechas. Olhou no espelho espantado: estava com um aspecto menos esquelético. Na verdade ainda estava magro, mas sua magreza tinha uma aspecto mais natural, sem todas aquelas saliências ósseas, quase como ripas de madeira sustentando uma cabana feita de pele bem fina. "O que aconteceu comigo?"

Saiu do banheiro temeroso de que fosse visto pela mãe, e que ela estranhasse a aparência que tinha agora. Por isto correu direto pro quarto, revirou o guarda-roupa até achar as peças mais largas que tinha, e vestiu-as. "Acho que dá pra eu despistá-la com estas." No espelho inteiriço admirava-se vestindo uma blusa de manga comprida marrom, bem larga, e uma calça de moletom cinza. Pra completar vestiu seu maior par de tênis, e quando achou que já estava bem "disfarçado de si mesmo 5 minutos atrás", saiu do quarto, e foi testar seu truque.

Assim que chegou na sala o pai acabou de entrar pela porta da rua. Pelo semblante parecia exausto. "Oi pai." "Oi filho..." "Como foi seu dia hoje?" "O de sempre..." "Hmmm..." O silêncio deu uma volta completa em torno da sala de visitas, gastando tempo suficiente para o pai descalçar os sapatos, tiras as meias, desafivelar o cinto, desabotoar 4 botões da camisa, largar o corpo na poltrona, esticar as pernas, e jogar a cabeça pra trás. "Quer falar sobre ele?" "Sobre o quê, filho..?" "Seu dia." "Pra quê..?" "Pra saber o que você fez." "Eu trabalhei..." "Eu sei disto." "Então por que perguntou..?" "Quero saber o que você fez no trabalho." "O mesmo de sempre..." "E nada mais?" "O que por exemplo?" "Algo fora do comum." "Fora do comum..." "É." "Você diz, além do que eu geralmente faço pra sustentar vocês..?" "Sim." "Correção: você!" "É." "Ah, pelo menos você admite!" "A mamãe falou que você gasta todo o dinheiro que ganha comigo." "Ah tá! Então agora finalmente estamos jogando sem trapaças..." "Não entendi." "Tá, se é pra ser sincero, botar todas as cartas na mesa..." "Que cartas?" "Sabe o que mais eu fiz no trabalho hoje, filho?" "O quê?" "Eu comi a Sônia!" "Comeu?" "Sim, eu comi! Transei! Fiz sexo com ela, como tenho feito quase todos os dias!" "Sexo?" "Aham! Sua mãe nunca te contou como você nasceu?" "Eu já aprendi isto na escola." "Então por que o espanto?" "Você não devia fazer isto só com a mamãe?" "He! Sim, eu DEVIA, mas não faço mais!" "Por quê?" "Porque ela não QUER mais!" "Por quê?" "Porque ela não vive mais. É uma morta-viva!" "Ela disse isto também." "Ah é? E o que mais ela disse? Por acaso disse que já tentou se matar... (deixa eu ver...) umas 7 vezes?" "Não, isto não." "Pois é, ela tentou. Tava afim de se livrar de nós, ou melhor, de você, do jeito mais fácil, a covarde." "Por quê?" "Porque ela não aguenta mais! Porque ela também já cansou da merda que virou nossa vida desde que você nasceu! Porque ela não se sente mais bonita (e nem é!) como antes! Porque ela sabe que eu não a quero mais, e que por isto eu tô trepando com a Sônia, e querendo me separar dela, de vocês dois. Quero me ver livre de vocês, do suplício que vocês são! Do peso morto que são os dois. Eu não aguento mais também, e não quero ficar como ela ou como você! Eu quero viver! Quero alguém que faça eu me sentir vivo, e não ter que voltar pra essa porcaria de casa que mais parece uma tumba enorme com dois cadáveres esperando o dia inteiro pra me assombrar no final dele, justamente na hora em que eu quero um pouco de descanso, um pouco de paz e sossego! Aliás! Quer saber? Não vou dormir aqui hoje! Vou pro apartamento da Sônia! Lá pelo menos vou encontrar um pouco de paz e prazer, duas coisas que andam em falta por aqui há anos!" e pegou numa mão os sapatos, na outra as chaves do carro, levantou-se, andou até a porta, descalço mesmo, saiu por ela, e a bateu com força.

Quando o silêncio resolveu dar uma nova volta pela sala de visitas, Gutinho sentiu o mesmo peso enorme no estomago, como o de minutos atrás, correu novamente pro banheiro, e chegou a tempo de ver sua barriga inchar mais uma vez, numa explosão, e espalhar todo o inchaço para o resto do corpo. No espelho sobre a pia olhou seu rosto: estava inchado como o rosto de sua mãe quando acabara de lhe dar à luz (embora ele não soubesse disto). Despiu-se todo e descobriu que estava assim também nos braços, pernas, barriga e nádegas. "Como eu engordei tanto em tão pouco tempo..? Primeiro depois de falar com a mamãe, e agora depois do papai falar comigo. Será que foi isto?"

Gutinho passou aquela noite trancado no quarto, insone, pensando em como explicaria a seus pais como ele havia engordado em questão de minutos o tanto que ele jamais engordou em seus 13 anos (a idade que tinha naquela noite tão significativa pra sua vida).

Já nascia o dia quanto resolveu aproveitar as primeiras horas da manhã, com o céu metade estrelado e metade "endiarado", pra sair de seu quarto, tomando muito cuidado pra evitar qualquer ruído que pudesse acordar sua mãe (ela dormia pesadamente na enorme e solitária cama de casal, no quarto ainda escurecido pelas grossas cortinas da janela, as quais impediam qualquer fóton solar em sua investida para invadir o quarto, e salvá-la da prisão noturna). Assim que chegou na sala de visitas, abriu a fechadura da porta da rua o mais rápido e silencioso que pôde, e abandonou seu lar.

Vocês devem ter estranhado o final do parágrafo anterior, mas já adianto explicando que, antes de sair, Gutinho havia pego sua mochila, tirado dela todos os cadernos e materiais escolares, e no lugar posto o maior número de camisetas, calças, bermudas e cuecas que pôde enfiar lá dentro. A tal mochila não foi citada na cena porquê, antes de sair do quarto, ela foi jogada pela janela, bem em cima de um arbusto no jardim. E é justamente neste jardim que iremos reencontrar Gutinho agora, chegando até o tal arbusto pra pegar a mochila omitida no parágrafo anterior.

Sim, ainda falta descobrirmos o motivo pelo qual Gutinho resolveu fugir de casa. Mas, garanto que não irá demorar até que isto aconteça. Por enquanto basta saber que ele pôs a mochila nas costas, e começou a andar pela cidade sem rumo certo, olhando aquelas ruas madrugadamente vazias, tomando seu primeiro banho de sol, esperando pacientemente que mais pessoas viessem fazer companhia a Gutinho em sua tarefa de pisá-las. Mas, estamos nos desviando demais do protagonista, que àquela hora, mesmo após passar a madrugada inteira acordado, não dava sinais de cansaço. Pelo contrário, estava animadamente disposto a, literalmente, seguir em frente com seu plano. "Já que meus pais não devem descobrir, vou fugir de casa." Sim, foi simples assim. Nada muito pretensioso, é verdade, mas temos que admitir que havia sido uma idéia bem... objetiva, embora um tanto... vaga! "Mas... pra onde eu fugo?" E foi depois deste pensamento que Gutinho parou diante de um homem deitado no chão, roupas imundas e rasgadas, barba de uma semana, uma aura alcoólica envolvendo-o por completo, olheiras profundas, acabando de despertar.

Gutinho agachou-se, e começou a encarar aquele homem. O cheiro de álcool pareceu quadruplicar àquela distância, mas não o incomodou. "Olá!" "Hrunf..?" "Como foi sua noite?" "Q... Quem é você, muléqui?" "Guto. Alguns me chamam de Gutinho" "Quêqui cê tá fazendu aqui?!" "Fugindo de casa." "Pur quê?" "Porque meus pais não podem saber que eu engordei." "U quê?!" "Eles não podem saber que..." "Quêqui tem qui cê ingordô?" "Não entendi a pergunta." "Qualé u grandi pobrema di você tê ingordadu?" "Fui muito magro minha vida inteira, daí ontem eu engordei." "Ontem?" "É." "Pur que só ontem?" "Ainda não sei. Acho que é porque meus pais ficaram chateados comigo." "Hahaha! Tu tá malucu, muléqui? Ninguém ingórda pur issu não!" "Então como eu engordei?" "Ieu é qui vô sabê? Tenhu pobrema dimais pra resolvê pra ficá mi preocupânu cum muléqui qui fogi di casa purquê ingordô!" "Que problema?" "Tu tá tirandu cumigu, né?" "Tirando?" "É!" "Como assim?" "Cê tá querênu mi sacaniá, né?" "Sacanear?" "É! Cê tá pensandu u que? Qui eu vô acreditá qui você qué ouví meu pobrema?" "Mas eu quero!" "Ah! Vai contá essa pra ôtru, vai!" "Por que contar pra outro?" "Purquê eu num tô a fim de sê sacaniadu!" "Não quer falar sobre os seus problemas?" "I pra quê eu vô perdê meu tempo falando deles pra você?" "Porque eu quero saber." "(...) Você é bem estranho, muléqui..." "Por quê?" "Purquê muléqui da sua idade num sai pur aí a essa hora fugido di casa i pára pra cunversá cum caxacêru. Muitu mênus pédi pra êli contá us pobrema dêli." "Mas eu quero que conte!" "(...) Tá legal. Se você qué mêsmu sabê, eu côntu..." "Sim." "Mais dipois num reclama!" "Tá." "Minha vida sêmpri foi uma bosta, na verdadi..." "Por quê?" "Purquê u filhu da puta du meu pai largô minha mãe i us meus 7 irmão pra ficá cum uma muié mais gostosa i mais nova qui a minha mãe." "Gostosa?" "É. Mais bunita!" "Ah tá. Meu pai fez isto com a minha mãe também." "Ah, intãu você sabi qui merda é issu." "Acho que sim." "Mais num foi só istu qui feiz minha vida sempri sê uma bosta." "O que mais?" "Minha mãe era faxinêra, num ganhava u tantu qui precisava pra compra di cumê pra genti, daí num demorô muitu pra virá puta..." "Puta?" "É. Saí pur aí oferecendu u rabu e a buceta pra hômi im troca di grana." "Sua mãe tem rabo?" "Ah, ela tinha! I dus grandi! Já morreu a coitada..." "Morreu de quê?" "Foi fazê boquéti num gringo i ingasgô cum a porra dele." "O que é boquete?" "Ah, isquéci, muléqui! Tu ainda é nôvu dimais pra ouvi essas coisa!" "Mas eu quero ouvir!" "Tá, tá... Enquanto ela tava viva a genti até qui tava numa boa. A grana tava entrandu mais fácil que us pau entrava na bunda dela." "Pau? Os homens batiam nela com pau?" "Alguns batia." "Nossa! E ela não machucava?" "Machucá machucava, mas ela já tinha se acostumadu." "Coitada..." "É, pois é. Mais pêlu mênus a genti tinha du quê cumê. Só qui dipois ela morreu, a grana parô di entrá, meus irmão foro um pra cada ladu, um virô traficante, dois morreru, e us ôtrus tão pur aí caçando algum quebra-galhu pra fazê, pedinu ismóla, vendenu picolé in carrinhu... Tem um qui eu ouvi falá qui tá seguinu a profissão da mãe. Chupânu pau di gringu in troca di grana. Mais issu eu num faço nem mortu!" "Deve ser estranho chupar pau..." "É nojento!" "Se bem que eu nunca provei..." "Ah, nem arrisca, muléqui! Vai qui cê toma gostu!" "Não sei. Madeira não deve ser ter um gosto bom." "Madeira...? (...) Pff..! HAHAHAHA! Boa, boa..!" "Não entendi." "Olha... brigadu pur ficá aí sentadu ouvinu meus pobrema. Foi legal da sua parti." "Eu também gos..." e sentiu aquele baque seco e pesado no estomago.

Sua barriga inchou na hora. "Quêquié issu, muléqui?! Tá passanu mau?" "A-acho que... tô engordando de novo!" O inchaço espalhou pelo corpo, e em poucos segundos Gutinho estava três vezes mais gordo que no início da conversa com o mendigo. "É assim que você ingórda?" "É..." "Tu é bem istrânhu mesmu, muléqui." "Acho que sim.." "Óia, eu até ti levaria num hospitau agora, mais ainda tô tontu dimais pra ti acompanhá..." "Não precisa, eu tô bem agora." "Certeza?" "Sim. Só fica ruim no começo. Depois volta tudo ao normal." "Óia muléqui, isso qui ti aconteceu agora é tudu, mênus normau." "É, acho que tem razão." "Tu divia procurá um médico." "Talvez." "Mais, é você qui sabi u qui faiz da sua vida." "Eu sei." Os dois compartilharam um silêncio e dois olhares vazios, e depois... "Já vou indo." "Tá bão. Boa sorti na tua fuga, muléqui. Vai precisá." "É, acho que sim." "Pode acreditá." "Sim." e Gutinho seguiu em frente.



(continua...)

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Comentários:

Não sei pq... ou talvez eu saiba, mas esse texto nunca me passou uma boa impressão... Não gosto dele, do que ele representa, do que ele mostra... e principalmente das sensações que ele traz. Não é do tipo beleza triste... ele é feio, vazio, apesar de bem escrito.

Tati | 27-12-2008 15:33:49
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Bom...

Aélsio | Email | 27-12-2008 14:02:14

domingo, 21 de dezembro de 2008

[REFLEXÕES] Um Ano

Se passa num abrir e fechar de olhos, como diria o narrador das aventuras de Goku no anime Dragon Ball (a primeira fase, da que eu mais gosto, em que tudo é mais simples e divertido).

Não foi um ano fácil, longe disto. Foi tão cheio de altos e baixos que muitas vezes deu pra embrulhar o estômago de tando que a montanha russa subiu e desceu.

Conheci novas pessoas, fiz novos amigos, me diverti muito, conheci e redescobri partes de mim que eu desconhecia ou que apenas esperavam que voltassem a dar novamente as caras.

E amei, sim, eu amei. Amei demais, como ainda amo, como amarei por um tempo que, espero, dure até o fim da minha vida. Amei tanto que muitas vezes me senti flutuando, me senti mais leve que uma pena, mais leve que a coisa mais leve que existe nesse mundo (não me pergunte qual, pois não sei). Mas também amei tanto que doeu, e muito.

Sorri demais, chorei demais. Dei um bocado de risadas, e me desabei em lágrimas de tal forma que soluços e falta de ar muitas vezes foram inevitáveis.

Este é o ano que termina me dando de presente muitas lembranças, de pessoas, de lugares, de fatos, de sabores, aromas, cores, da vida, de um modo geral, e suas múltiplas, infinitas manifestações.

E taí outra coisa que aprendi a fazer melhor este ano: viver. Olhar um pouco mais pros lados, mas sem ficar desatento ao que ocorreria em mim.

Não sei ao certo se tornei uma pessoa melhor este ano. Eu tentei, diversas vezes, e em muitas eu pensei que estava conseguindo, e acho que consegui sim, num bocado delas. Mas também levei uns tombos memoráveis, e magoei algumas pessoas. Magoei pessoas que me amam tanto quanto eu as amo.

Sinceramente, foi um dos anos mais difíceis da minha vida. Foi o ano que mais exigiu da minha capacidade de adaptação, esta que salvou nossa espécie da extinção até aqui. Viver é um negócio sofrido demais. Mas, quando a gente consegue passar pelas piores partes, muitas vezes a gente ganha as melhores de presente.

Como disse agora há pouco num e-mail que escrevi pra uma amiga de longa data, este ano eu encontrei minha "Ilha Desconhecida". Essa pessoa apaixonante, vibrante, fascinante, que deu um novo sentido à minha vida. Na verdade não um novo, mas um sentido. Ou melhor, ela não me deu isto, ela me ajudou a encontrar o que já vivia em mim, e que vinha ignorando por anos.

Estou olhando agora pro título do post anterior, praquela foto do início deste ano, nossas mãos entrelaçadas. Sinto vontade de chorar um choro ambíguo, um choro de alegria e tristeza ao mesmo tempo. Aconteceu num dos dias mais felizes da minha vida, e esses dias hoje são apenas lembranças, algumas das quais registradas em fotos, outras apenas presentes em nossas mentes, como névoas que precisamos nos esforçar algumas vezes para que tomem forma, e tragam de volta à nossa consciência uma cena, um detalhe, uma sensação, uma textura, sabor, som, do que aconteceu naqueles dias.

Às vezes uns fatos ocorridos em 2008 parecem tão distantes, diante de tudo que separa um do outro, do que aconteceu, do que está acontecendo...

Alguns dizem que recordar é viver, e é isto que estou fazendo agora, vivendo parte daqueles bons, ótimos, inigualáveis momentos.

O post anterior, escrito há tanto tempo atrás, não fez jus ao significado que aqueles dias tiveram pra nós dois, e nem este fará jus ao significado deste ano pra nós. Aconteceu muito, e tentar listar tudo de bom e de ruim, mas, acima de qualquer coisa, tudo que nos ajudou a chegar até aqui com toda essa experiência, seria perda de tempo. Não há como transformar em palavras essas lembranças, e não há como dar a elas o peso, o significado, a importância que elas têm pra nós.

O que estou tentando aqui é registrar quão importante foi este ano pra mim, quão especial. Sentir que fazemos parte do mundo de outra pessoa, sentir que encontramos nossa "Ilha Desconhecida", e que ainda há muitos lugares pra conhecermos dela, e que gostaríamos de viver nela até o fim de nossos dias, é algo que só vivendo mesmo pra saber.

Tô perdendo o foco aqui. Falei muito, mas acabei não chegando a lugar nenhum.

Um ano se passou, se completou, e tudo que eu queria agora era que esta foto aí debaixo não fosse só uma foto, mas algo pro qual eu estivesse olhando agora, sentindo, vivenciando. Que ela fosse o presente, e não este minuto aqui, neste computador, diante desta tela. Era tudo que eu queria. Mas se é assim que tem que ser, que assim seja. Não há muito o que se fazer mesmo...

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Comentários:

O que vc viveu esse ano, o que a gente viveu, não há palavras pra expressar... O sentimento porém, vai ser eterno, amo vc! Apesar de tudo, amo vc! MUITO!

Tati | 25-12-2008 14:13:45