quinta-feira, 8 de novembro de 2012

[DESABAFO] Eu Tive Um Tio, Seu Nome Era Enio


A lembrança mais remota que eu tenho de um sonho é uma de quando eu tinha uns cinco anos. Nele estávamos eu, meu pai e meu irmão visitando a casa dos meus avôs paternos. Meu pai conversava com o Vô Antônio, e ao fundo, sempre lá, meu Tio Enio estava na dele. De alguma forma o Thiago, meu irmão, deu um jeito de subir no telhado da casa do meu avô, e quando eu me dei conta ele já estava na beira do telhado, ameaçando pular. Não foi como se ele estivesse querendo se matar. Ele só tinha três anos na época, e no sonho era mais como se ele achasse divertida a idéia, e acreditasse que miraculosamente ele aterrissaria no chão como uma pena ou sairia voando. Todos ficaram alarmados quando apontei pro Thiago lá no alto, e o sonho terminou por aí, até onde eu me recordo. Mas este texto não é sobre este sonho, é sobre o meu tio, sobre o cara que foi apenas um figurante dele.

Verdade seja dita, meu contato, e o dos meus irmãos, com meus avôs e tios paternos foi muito pouco ao longo de nossas vidas. O que eu me lembro dos meus primeiros anos se resume a uma visita que eu, meu pai e meu irmão fizemos aos meus avôs logo depois do meu pai comprar uma caixa de doces que vinha cheia caixinhas, cada uma contendo uma guloseima e um brinquedinho surpresa. Uma espécie de proto-Kinder Ovo. Não lembro de haver muita interação entre eu, meu irmão e meus avôs e tios.

Importante salientar que com meus avôs também morava, além do Tio Enio, minha tia Maria, e minhas primas Alessandra e Kátia. Mas não pretendo entrar em detalhes a respeito deles, pois este texto também não é sobre meus outros parentes paternos. O que importa é que pouco restou de lembranças daqueles primeiros anos relacionadas a eles.

Isto foi em meados de 1987 e 1988, ano em que nos mudamos de Caratinga para Guaxupé, onde moro atualmente. Em 1990 ganhamos nossa irmã caçula, a Isabelle. Dois anos depois nos mudamos para São Sebastião do Paraíso, e no começo do ano seguinte para Alfenas. No meio de 1993 voltamos todos a morar em Caratinga, fechando o primeiro ciclo de minha vida e do meu irmão, e lá passamos os nove anos seguintes.

Deste período a lembrança mais recorrente de interação entre eu, meus irmãos e meu avôs e tios são as visitas que fazíamos aos domingos. Devo confessar que o que mais me incentivava a fazer estas visitas na época não era a visita em si, mas o que vinha antes dela.

Praticamente todos os domingos eu e meus irmãos levantávamos bem cedo, e saíamos de carro com o meu pai pra passear pela cidade. A parada mais importante do passeio era na banca de revistas do João, onde meu pai comprava "revistinhas" pro Thiago e eu (na época não as chamávamos de histórias em quadrinhos ou HQs). Depois de "adoçar" nossa boca, meu pai nos levava direto pra casa dos meus avôs, sempre uma hora ou mais antes do almoço.

Não havia muito o que fazermos nessas visitas. Geralmente eu e o Thiago queríamos voltar logo pra casa pra começar a ler as revistinhas compradas pelo meu pai, enquanto ele ficava conversando com o Vô Antônio e com o Tio Enio.

Mas nem tudo era ruim nestas visitas. Meu avô sempre nos recebia animado e fazendo piadinhas (achava particularmente divertido ouvi-lo sempre chamar nossa irmã de Isabellita, e ele parecia sentir um enorme prazer em fazer isto). Eu gostava muito do meu avô paterno. Já a Vó Maria era mais direta na hora de nos receber. Não puxava muito assunto, e geralmente estava na cozinha do lado de fora da casa preparando o almoço junto com a Tia Maria.

Mas não era só meu avô que era legal, meu Tio Enio também nos recebia animado. Não fazia muitas brincadeiras, mas era nítido que ele gostava de receber nossas visitas. Não puxava muito assunto, mas vez ou outra fazia perguntas pontuais demonstrando que tinha algum interesse em nós.

O Tio Enio viveu a vida inteira com o Vô Antônio e a Vó Maria. Até pouco tempo atrás tudo que eu sabia a respeito era que ele tinha "problemas psicológicos" que o impediram de ter uma vida profissional e pessoal "normais." Ele tinha um quartinho fora da casa principal dos meus avôs paternos. Um de seus maiores prazeres era cuidar de seus passarinhos, que criava em gaiolas individuais. Apesar disto gostava muito deles. Às vezes nos chamava pra ouvir o canto animado de algum deles. Às vezes preferia ficar na dele, contemplando o espaço sobre o muro que separava a casa dos meus avôs da casa vizinha, onde hoje é a casa de outro dos meus tios paternos, o Evandro.

Apenas nos últimos dias eu descobri que meu tio tinha esquizofrenia, embora eu sequer desconfiasse que fosse este o problema dele. Ele não parecia tão mal assim aos meus olhos. Mas não dá pra levar isto em consideração, pois os únicos contatos que tive com ele foram naquelas visitas de domingo.

Outra descoberta recente é que ele gostava de escrever. Eu não sabia disto, descobri através do meu pai. Mas faz todo o sentido do mundo, pois ele era um homem muito discreto, algumas vezes muito calado e contemplativo. Pessoas assim costumam ter uma vida interior muito rica. Digo isto por experiência própria.

Outro dos prazeres que ele tinha era o de ouvir um radinho velho, que parecia sintonizar-se diretamente com alguma emissora de décadas atrás. Sabe quando você vai pro sítio do seu tio e ele leva um rádio junto e começa a sintonizar modas de viola que parecem vir através de um túnel do tempo exatamente da época em que foram compostas? Bem isto.

Não vou dizer que eu adorava meu Tio Enio, mas devo dizer que sentirei falta do que eu deixei de conhecer dele. E aproveito pra admitir que por muitos anos eu temi ter o mesmo destino que o dele. Terminar vivendo o resto da minha vida na casa dos meus pais, em reclusão, sem constituir uma família, e morrer só no meu quartinho isolado do resto da casa e do mundo lá fora. Hoje não tenho mais tanto medo assim, afinal, já tenho 30 anos, e continuo morando com meus pais, e atualmente ainda divido a casa com meus dois irmãos. Mas isto já não é mais motivo para o terror que antigamente me dominava sempre que eu lembrava do Tio Enio.

Ele foi um homem que não teve a chance de alcançar grandes realizações. Talvez tenha vindo neste mundo com o potencial para ser um grande escritor, ou alcançar qualquer outro tipo de sucesso profissional. Meu pai me disse que ele era muito querido no banco onde trabalhou por alguns anos, e muito respeitado por sua eficiência no trabalho. Também disse que seus problemas começaram quando foi participar de um congresso como representante do banco, e teve um surto que o fez abandonar o evento repentinamente, e voltar pra casa sem maiores explicações. O diagnóstico veio meses depois quando fizeram vários testes para descobrirem a causa de uma atitude tão inesperada e inexplicável.

Deste dia em diante não passou outro sequer sem ter que tomar medicamentos para controlar seus "problemas." E raras foram as vezes que saiu do conforto e do aconchego da casa de nossos avôs.

O Tio Enio foi um homem que se esforçava para mostrar que estava tudo bem. E, segundo minhas descobertas recentes, também parecia ser um homem cheio do que contar para o mundo, algo que infelizmente não fez.

Doze dias atrás ele foi levado às pressas para o hospital após passar muito mal. Descobriu-se que ele estava com um tumor no intestino delgado. Vinte centímetros de muito potencial, sentimentos e idéias reprimidas. Vinte centímetros de um homem que passou a maior parte de sua vida deixando de ser quem poderia ter sido. E graças a isto, e aos dias de agonia, fui capaz de descobrir aspectos do Tio Enio que me deixaram com vontade de ter aproveitado mais quando tive a chance de conhecê-lo além daquela superfície que ele nos apresentava; além daquele sorriso simpático, daquela voz um tanto abafada que escondia atrás de si uma firmeza e imponência que poucas vezes parece que foi usada.

Ontem, meu Tio Enio faleceu. Libertou-se, eu diria, da condição em que esteve confinado a maior parte de sua vida. Meu pai ficou aos prantos, e com muita razão, pois era o irmão mais velho depois dele, e seu companheiro na juventude. Brincavam muito na rua quando crianças e saíam para beber e paquerar quando jovens.

Eu não chorei, mas senti a perda à minha maneira, e através do sofrimento do meu pai. É sempre triste ver alguém com tanto potencial partir assim, especialmente uma pessoa com quem nos identificamos tanto a ponto de temer compartilhar do mesmo destino. Não acredito mais nisto. Mas creio que agora, onde quer que ele esteja, ele será mais feliz. Se há alguém que merece algum tipo de felicidade e realização é ele. E se há algum dos meus tios paternos que merece ter sua história contada aqui, e compartilhada com meus amigos e leitores, na esperança de que, através dele, sua história se propague, é o meu Tio Enio. Que ele descanse em paz, e que sua lembrança continue vivendo aqui enquanto este blog durar.