quinta-feira, 3 de janeiro de 2008

[CONTO] Avatares

Kites de Sancturus

Papéis de seda e fitinhas de plástico coloridos. Duas varetas. Cola. Tesoura. Barbante. Criatividade. Os ingredientes para se fazer um avatar.

Depois de combinar tudo isto, só lhes resta encontrar um campo de céu livre, um pouco de vento, um bocado de paciência e persistência, e logo estarão planando lá no alto, através deles.

O conduto continuará sendo um problema. É por intermédio dele que os controlam, direcionando seus vôos, mas, por mais fino que seja, continua sendo grosseiro demais, como uma algema segurando uma de suas pernas, prendendo-as ao solo. São incapazes de se esquecerem totalmente de suas condições. Não conseguem desviar por muito tempo seus olhos daqueles desajeitados corpos lá embaixo, lembrando-lhes que ainda estão presos a eles, apesar da fugidia liberdade que usufruem naquele instante.

Alguns, os mais egoístas, alimentam a ilusão de serem mais livres que os outros, embebendo seus condutos em uma mistura de cola e vidro em pó. Rasgam o ar em busca de adversários, sempre procurando roubar-lhes parte daquela tosca liberdade que tentam aproveitar ao máximo. Usam seus condutos cortantes para romperem o de outros, menos orgulhosos, mais desprevenidos de tais ameaças aéreas.

Há também os egoístas/orgulhosos que brigam entre si, disputando qual possui o conduto mais cortante, capaz de garantir-lhe um tempo maior de usufruto alado. Às vezes ferem seus corpos durante a preparação, ou mesmo no calor do combate, mas para eles vale tudo, desde que aumentem a duração de seu gozo de prazer libertário.

Os avatares são, na maioria, precários. Qualquer um dotado de certa habilidade e coordenação motora, mesmo que pouca, é capaz de fazer um. Há os que tentam enfeitá-los mais, talvez na tentativa de provarem-se mais aptos e merecedores do vôo libertador, porém seus esforços são inúteis, se visam somente isto. Harmonia estética nada tem a ver com a pureza e clareza das sensações libertadoras que seus condutos lhes retransmitirão. É mais uma questão de fé, de força de vontade. De esperança!

Não importa a beleza física do avatar, a espessura de seu conduto, ou a habilidade de seu corpo desajeitado. O que importa é a mente que o conduz. O que importa é o seu desprendimento, a sua capacidade de projetar-se, de entregar-se ao avatar, ao vento que o mantém no alto, e esquecer-se de todo o resto, lembrando-se sempre que tudo mais deixará de ter importância um dia, restando somente nós, sem necessitarmos deles, voando o mais desprendido dos vôos: o da alma.

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