sexta-feira, 24 de dezembro de 2004

[CONTO] Lá adiante, onde não há

Cavalgo sobre o rio de fogo em meu cavalo de ouro com olhos de diamante, ouvindo a chuva cortante de lâminas mergulhadas no mais mortífero dos venenos. O céu coberto de espessas nuvens avermelhadas, tornando a atmosfera carregada, gerando raios que são ouvidos por todo aquele vale escuro que vejo à minha frente.

Ali está o fim de minha jornada. Ali o solo ferve, o ar crepita, ossos viram pasta, e nem sequer dragões conseguem se aproximar.

Ali é o ponto onde o tudo se torna o nada, onde as patas do meu cavalo de ouro irão se derreter, fazendo com que eu perca o único companheiro que me restou nessa exaustiva e laboriosa caminhada rumo ao vazio de minha alma atormentada. Ao ponto focal da destruição profetizada. Ao final dessa viagem sem volta que um homem faz, ao escolher morrer sozinho, sendo consumido por si, deixando o mundo pra trás, pois aqui ele se encontra em seu limite.

Aqui, não há mais realidade, apenas um homem e seu cavalo de ouro, e a escuridão que não dá espaço ao brilho do passado, à luz que não mais se reflete em seus olhos de diamante, em meus olhos vazios, e meus cabelos sem trato, em minha pele sem cor, em minha alma que não é mais sol, mas uma pedra escura vagando pelo vácuo.

Escolho descer de meu bom companheiro dourado pouco antes de transpôr os limites derradeiros. Ele não merece se sacrificar por mim. Digo a ele que volte ao mundo que ficou lá atrás, voltando, assim, a lhe oferecer o brilho único que ele possui, e que eu já não posso mais apresentar diante daqueles que lá vivem, e que tanto valorizam essa luz que alguns deles emitem por si mesmos.

Pura ostentação! É isso que eu digo nessa altura de minha vida! Pura ostentação!

Triste, porém, com uma ponta de alívio e um até um pouco de satisfação, vejo meu companheiro, hesitante, partir em sua caminhada de volta ao mundo que deixei. Olho para o céu acima e vejo que daqui nem sequer aquelas nuvens avermelhadas de agora a pouco, tão ameaçadoras, sequer ousam se aproximar. No fim, poucos têm coragem o bastante pra enfrentarem o próprio fim, nem mesmo as nuvens.

Talvez as pedras sejam as mais corajosas neste ponto, pois aqui elas prevalecem. Aqui elas se espalham pelo chão, como que me convidando a seguir em frente.

Não sinto medo, assim como elas, e talvez seja justamente por minha alma agora se assemelhar a estes pequenos corpos brutos de matéria inerte, sem terem pra onde ir. Sem terem por que seguirem em frente. Esperando que chegue alguém para chutá-las, ou que algum abalo sísmico ao menos mude todas elas de lugar, pra variar um pouco suas existências vazias.

No final, muitas delas terminam aqui, adornando o cenário do próprio fim. Do fim de tudo.

Engraçado como a gente às vezes têm curiosidade pra saber como vai ser quando chegarmos aqui. Mas, conforme nos aproximamos, nossa curiosidade de dissipa, e o medo vem, seguido da vontade de voltar lá pra trás, quando não há mais volta.

Meu companheiro dourado teve escolha, e apesar de hesitar no último instante, ele sabia que era uma decisão inevitável. Desde o início ele sabia que terminaríamos separados um do outro. Ou melhor, não desde o começo, mas a partir de um certo ponto, ele tomou ciência disto.

Lembro-me de seu olhar triste, que vez ou outra ele dirigia a mim. Fazia o possível pra disfarçar, mas não adiantava tentar encobrir externamente algo que já fora primeiramente sentido.

Mas, agora isso tudo não importa mais. Eis o fim à minha frente. Não pretendo olhar pra trás, mesmo porque não verei mais nada neste ponto onde já me encontro.

Fecho os olhos, me jogo no nada infindável.

É confortável... É silencioso... Minha alma se cala... Meus pensamentos se dissolvem...

É o fim... Apenas o fim...

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Comentários:

"vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar". Se encaixa bem, Wolv, muito bem. É uma pretensão da minha parte, mas ainda sim se encaixa bem. Mas não é o fim. "Nada acaba Adrian, nada". Dr. Manhatann.

runagalf | 26-12-2004 11:03:36

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