sábado, 15 de abril de 2006

[CONTO] Cacos

'Of a Broken Man' de Lucas Exhibit

Tudo começou com uma decepção. Uma grande decepção. Bom, pra ser bastante preciso, uma grande e imperdoável decepção consigo mesmo.

Tinha nojo de sua própria imagem desde que fez aquilo. Era tamanho seu sentimento de repulsa por si mesmo que a primeira atitude tomada após aquele dia foi quebrar todos os espelhos da casa, não com um martelo ou porrete, mas com os próprios punhos. Nem se deu ao trabalho de tratar dos cortes, simplesmente se permitiu pegar todos os cacos espalhados e levá-los para a área ao redor da piscina.

Era muito vaidoso antes do que fez. Embora não parecesse agora, ele gostava de espelhos, ou mais particularmente de seu reflexo neles. Também gostava da piscina, especialmente quando cheia de convidadas, todas completamente nuas, ali só pra ele.

Mas agora dos espelhos só restavam os cacos jogados em um canto da área ao redor da piscina. E esta não estava cheia nem de convidadas nuas, e tão pouco de água. Fez questão de esvaziá-la completamente, tomando o cuidado de entrar pessoalmente naquele enorme buraco arredondado, forrado por enormes placas de mármore esverdeado, e enxugar com uma toalha cada pequena poça, ou uma mera gota que encontrasse ali. O que seria feito naquele lugar não permitia a presença de um elemento cuja natureza era pura.

O passo seguinte durou semanas. Em condições normais duraria tranquilamente meses, mas ele era alguém de muito status, e acima de tudo muito dinheiro. Portanto não foi difícil conseguir as garrafas.

Não eram garrafas normais, o que fazia parte de sua exigência, mas sim aquelas cujo conteúdo foi bebido por seres cheios de arrogância, ganância, ambição desmedida, intolerância e ódio. Ah, como haviam as tocadas por este último! Ódio pelos outros, pela vida, por si mesmo e por Deus. Ódio, ódio, ódio!

Passou dias quebrando todas, uma a uma, como fora instruído, até sobrarem cacos pequenos. Os cortes aumentavam em suas mãos. O sangue escorria até coagular e se secar. As feridas começaram a inflamar depois de um tempo. Mas logo a dor não passou de um incômodo a mais, como sua própria solidão, e sua quase insuportável convivência consigo mesmo, e com o que fez.

Seis dias depois todas estavam quebradas. Passou o dia seguinte inteiro jogando os cacos dentro da piscina. Quando terminou já estava anoitecendo. Olhou, por fim, para o canto da área ao redor da piscina e lá estavam os "restos mortais" dos espelhos que quebrara há semanas atrás.

Pegou cada punhado de cacos espelhados com as mãos nuas, ensangüentadas e feridas, e fez questão de arremessá-los ruidosamente no centro da piscina, sobre os restos das garrafas quebradas.

Olhou para a obra que lhe custou semanas pra concluir. A piscina estava cheia de cacos até a boca. Uma obra monumental, mas não totalmente completa. Faltava o toque final, o elemento principal.

Despojou-se de todas as vestes, olhou para as mãos e braços cortados, cheios de sangue escorrido e seco, e caminhou até a caixa. Trouxera do quarto no terceiro andar, pouco antes de começar o trabalho de despejar os cacos dentro da piscina. Enfim chegara a tão esperada hora de usar seu conteúdo.

Abriu-a, e dentro encontrou seus instrumentos finais: o punhal e o frasco.

O punhal possuía um cabo de metal dourado, muito desgastado pelo tempo. Ele inteiro era ornamentado por gravuras de significado desconhecido, o que era pra ele, naquela altura, um detalhe sem importância.

O frasco era quadrado, como um pote de nanquim. Seu líquido era de um verde escuro, quase negro.

Pegou o frasco e o abriu. Pegou o punhal e o embebeu com todo o líquido verde escuro.

Caminhou calmamente para a beirada da piscina, ergueu o punhal sobre sua cabeça, segurando-o com as duas mãos, e com um estampido baixo e seco, cravou-lhe no coração.

O sangue começou a jorrar quase que no mesmo instante, misturando-se com o líquido verde-escuro. Quando sentiu cada músculo, órgão e osso de seu corpo queimarem, ele sabia que era a hora de executar o ato final, a última pincelada.

Pulou sobre os cacos na piscina, arrastou-se até seu centro, e começou a usar a força renovada que invadiu seu corpo para cavar com as mãos a superfície de vidro, sem se importar com a dor dos cortes que se abriam.

Os cacos entravam nas unhas, nos dedos, alguns perfuravam até o osso. O sangue não parava de jorrar, mas ele continuou cavando, até começar a se enterrar sob a cova de cacos que conseguiu abrir.

Enterrou-se até o pescoço e começou uma dança obscena em meio aos pedaços de vidro, que perfuravam cada centímetro de seu corpo. Sentia-os entrando nos pés, nas coxas, nas nádegas, no pênis e nos testículos. Mas sua vontade de completar a obra era maior.

Uma mancha crescente de sangue começou a se espalhar pelos cacos no centro da piscina, e ao redor de seu corpo. Era a hora.

Gritou: "Que nasça!!!"

E, tomando impulso, arremessou o rosto contra os cacos dos espelhos bem na sua frente, esfregando-o neles.

Não se permitiu nem um gemido de dor quando sentiu os cacos perfurarem seus olhos, e desfigurarem aos poucos seu rosto, que já fora tão admirado pelas mulheres.

Quando finalmente parou, seguiu-se um silêncio, quebrado em seguida por uma explosão. Muitos cacos foram arremessados pra fora da piscina.

De dentro dela surgiu um calombo de restos de vidro, que não demorou muito para se revelar uma cabeça, pois abaixo dela havia ombros. Os braços emergiram logo depois, e quando o ser de cacos finalmente se pôs de pé sobre a superfície de vidro quebrado, a primeira coisa que fez foi arrancar de sua cova cortante, com um só puxão, o corpo do infeliz que o criou.

Segurou pelo pescoço aquele corpo dilacerado e desferiu-lhe um forte soco no rosto com sua enorme mão de cacos, sem soltá-lo.

Seguiu-se uma série de socos no rosto, no abdômen, e chutes nas genitálias, já bastante danificadas. Ao término do espancamento não passava de um pedaço disforme de carne.

O ser de vidros quebrados largou seu criador sobre a superfície de cacos e por fim se desfez, voltando a se espalhar na piscina.

Longos minutos se passaram, até que o pedaço de carne restante começou a pulsar, se remexer, se remontar.

Sob carne rasgada e ensangüentada surgiu uma mão, seguida de um braço, e finalmente uma cabeça. Estava nascendo.

Quando enfim abandonou a carcaça pútrida e surrada, mesmo coberto de sangue, via-se que o corpo era novo, isento de feridas, de marcas do tempo. Renovado.

Pôs-se de pé e deu o primeiro passo, deixando os restos de seu "ovo de carne" pra trás. Cortou o pé com os cacos, sentiu dor, assustou-se com o líquido vermelho que saía do corte, e por fim chorou. Quando notou que chorar não estava ajudando, voltou a andar, encarando o caminho que teria de seguir até atingir a borda da enorme piscina.

Cacos por todo lado. As feridas seriam muitas, mas poderia tratar delas assim que saísse dali. Mal sabia ele que depois da piscina havia um mar, lá fora, lhe esperando.

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Comentários:

Referencias? Parece uma metafora espirita pra mim...

Cilon | 18-04-2006 19:30:03
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Olha, pra esse conto em particular eu não me lembro de ter usado referência nenhuma. Simplesmente foi uma idéia que surgiu, há muito tempo atrás, e que só recentemente eu consegui passar pro papel (já faz alguns meses que eu estava com ele pronto por aqui). E, sim, eu crio imagens mentais das minhas histórias, às vezes chego até a imaginar tomadas, como se estivesse dirigindo, mas isso fica meio complicado de transpôr pro texto.

Wolv | 18-04-2006 06:37:11
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Suas referências obviamente são diferentes das minhas. Mas foi estranho como relacionei seu conto (é um conto?) com VÁRIAS coisas, de Nip/Tuck a Monstro do Pântano, e principalmente uma história do Moebius, só de imagens. Aliás, vc concebe visualmente sua história? É pra se pensar naquilo de "uma câmera na mão, uma idéia na cabeça"...

mariana | Email | 17-04-2006 10:59:21

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