quinta-feira, 1 de novembro de 2007

[CONTO] O Coração e o Ser

(Texto originalmente concebido em 16/08/2006 e reescrito em 09/07/2007)



Havia quatro elementos: o vazio, o ser, o coração e seu globo.

O sistema era simples: o vazio envolvia o ser, que observava o coração dentro de seu globo.

O vazio era um espaço infinitamente preenchido por uma brancura cegante.

O ser também era branco, porém mais pálido que o do vazio, no qual seu corpo esguio flutuava. Estava nu, não se movia, e mantinha os olhos cinzentos fixos no coração pulsante.

O globo, de sutil matéria translúcida, continha o coração, e refletia em sua superfície o ser e o vazio. Dez vezes maior que o ser, seu pulsar emitia ondas de calor envolvente, aconchegante, maternal.

Não há como definir por quanto tempo o sistema se manteve assim. O que é passível de ser narrado resume-se à seguinte história:

Um dia, o ser mudou involuntariamente o foco da visão de seus cinzentos olhos, e a imagem do coração pulsante embaçou-se diante dele, trazendo ao primeiro plano uma outra que lhe fez sentir-se, pela segunda vez, surpreso: seu reflexo.

A surpresa cedeu prontamente espaço à curiosidade, e o ser começou, pacientemente, a descobrir-se em seu reflexo projetado no globo do coração. Primeiro percorreu com seus olhos a imagem de seu corpo. Viu-se esguio, magro, encurvado, braços pendentes, carregando mãos de cinco dedos. Viu duas pernas que saiam de sua cintura sustentando pés, também de cinco dedos. Também viu sua indefinição, sua falta de sexo, de identidade. Viu a pureza de sua brancura, e notou o vazio de sua consciência sem conceitos, que não era capaz de interpretar, categorizar e definir o que via como um ser composto de "braços" e "pernas" e "mãos" e "olhos". Notou que não sabia como reagir diante da visão de sua face lisa, oval, trazendo apenas um par de olhos cinzentos, e nada mais.

O ser, depois de um tempo, arriscou um primeiro movimento. Ergueu seu braço direito lentamente, levando sua mão até a altura de seus olhos. Fitou-a longa e atentamente. Em seguida ousou um segundo movimento, conduzindo-a à superfície de sua face. Deslizou-a sobre ela em um terceiro movimento, e sentiu-a lisa, macia, fria, mas ainda não sabia nomear tais sensações.

Com um quarto movimento repousou seu braço, enquanto acompanhava no reflexo todo o seu lento trajeto até a posição original. Neste momento notou que sua imagem sobrepunha-se ao vermelho do coração, desfocado ao fundo. Viu-se, subitamente, tingido pela cor dele e, num impulso, executou seu quinto movimento, mais uma vez erguendo a mão direita. Quando descobriu que ela permanecia palidamente branca, um profundo sentimento de perda e incompletude acendeu-se em seu interior.

Enquanto tentava concentrar-se neste sentimento, procurando uma forma de entendê-lo, o coração, que pulsava incessantemente, fez-se notar emitindo mais uma onda de calor maternal, a qual envolveu tão ternamente o ser, a ponto de fazê-lo esquecer-se do sentimento que nascera em si, e voltar o foco de sua visão para a fonte daquele calor vital.

Mas a imagem do imenso coração pulsante, que agora lhe parecia de um vermelho ainda mais intenso, logo fortaleceu o sentimento que havia esquecido há pouco, dando a ele condições de expandir-se dentro de sua mente pura e primordial, exigindo ao ser uma urgência na reparação da inquietude que gerava.

O ser voltou a focar seus olhos no reflexo de si, e notou como estava quase disperso no espaço de brancura infinita ao seu redor. Notou que seus contornos por muito pouco não sumiam diante de todo aquele vazio branco, que parecia ser capaz de absorvê-lo para si a qualquer instante.

A visão deixou-o ansioso, desesperado, inquieto. Sentiu-se sufocado ao notar-se envolto por um meio que lhe pareceu tão hostil e intimidador, tão intensamente branco em contraste com sua brancura pálida, que mal era suficiente para definir seus contornos, e salvá-lo da impessoalidade plena. Recorrendo ao único recurso sobre o qual conseguiu pensar, ergueu sua mão direita uma terceira vez, olhou-a o mais fixamente possível, e fechou-a com muita força, agarrando o imponderável, o intangível, na esperança de agarrar a si mesmo na tentativa de salvar-se do seu completo engolfamento pela brancura sem fim.

Quando se deu conta de que o esforço não fora forte o bastante, em um desespero instintivo encolheu-se sobre si mesmo, assumindo posição fetal, e assim ficou, até sentir-se novamente seguro, após receber as lufadas de materno calor emitidas pelo coração pulsante.

Finalmente sentindo-se seguro mais uma vez, o ser desdobrou-se, reassumindo a posição original. Voltou a fitar devotamente o coração e, imóvel, assim permaneceu por um longo tempo...

Súbito, num impulso de origem incerta, o ser lançou-se na direção do coração, estendendo-lhe a mão direita. A mão tocou o globo translúcido. O globo ondulou e partiu-se. O coração se libertou, expandiu-se, acolheu o ser em seu interior, e continou sua expansão pulsante.

O coração dobrou de tamanho, quadruplicou, octuplicou, e prosseguiu expandindo-se exponencialmente. Parecia inquieto, pulsava com certa ansiedade, na tentativa de cobrir o maior espaço possível com sua presença, que não parava de crescer. E assim continuou, indefinidamente, procurando preencher todo aquele infindável vazio branco em que estava, mas sem sucesso, pois ele, o vazio, era incansável em toda a sua infinitude.

O coração podia ficar do tamanho de um universo inteiro, e de fato ficou, podia cobrir a extensão de milhares, milhões de universos, e assim o fez, porém jamais conseguiria vencer a infinita presença daquela solidão de eterna brancura.

Após ficar expandindo em pulsações frenéticas por uma quantidade de tempo imensurável, o coração se deu conta de que jamais seria capaz de assumir toda a grandeza necessária para ocupar aquele vazio sem fim. Tal constatação tardia o assolou de forma tal que sua vontade de expandir em pouco tempo esgotou-se. Seu quente e vivo vermelho gradativamente empalideceu-se. Seu calor maternal foi se perdendo, tornando-o a cada dia mais frio. Sua presença foi minguando em velocidade bilhões de vezes maior que a usada enquanto expandia.

O coração encolheu, até ficar do tamanho de um punho fechado. Aos poucos seu vermelho pálido se tornou um rosado quase sem vida, que logo desbotou-se ainda mais. Por fim ficou branco, e foi murchando, murchando, até o tamanho de um feijão, e neste estado permaneceu por um longo tempo...

Um dia, aquele imóvel ponto errante vibrou timidamente, e um minúsculo calombo surgiu em sua superfície oval. Vibrou novamente e mais uma protuberância surgiu. E as vibrações se repetiram uma, duas, três vezes, totalizando cinco pequenos calombinhos. Um deles esticou-se um pouco para fora e comprimiu-se em sua base. Outros dois seguiram a deixa e também esticaram-se, porém mais do que o primeiro, ficando compridos e pendentes pouco abaixo dele. O quarto e quinto calombos acompanharam seus irmãos de cima e fizeram o mesmo. Logo aquela diminuta massa branca deu-se conta de onde poderia chegar, e com um enorme esforço contraiu-se todo, o que a fez brilhar. E o brilho foi se tornando mais intenso, e sua forma maior, e maior, e maior, e mais definida.

Do primeiro calombo brotaram olhos de um vermelho vivo. Do segundo e terceiro nasceram mãos de cinco dedos. Do quarto e quinto, pés.

O ser fitou longamente cada parte de seu corpo. Olhava cada uma das mãos e testava-as, movendo seus novos dedos. Tocava com elas seu rosto liso sem expressão, seu pescoço, seus ombros, seu... O peito! O que era aquilo em seu interior? Uma luz avermelhada pulsava lá dentro, vazando sua aura pulsante através da translucidez de seu tórax.

O ser tocou seu peito, e nele sentiu com maior intensidade o calor que o percorria por inteiro. Admirou devotamente o sólido fogo que trazia em si. Amava-o com um amor incondicional, primitivo, puro, ancestral. Amava-o tanto que logo sentiu-se incapaz de conter em si todo aquele amor, e por isso o libertou, atravessando com as mãos o peito de sutil matéria semi-intangível. Com elas segurou terna e cuidadosamente seu coração, e retirou-o de si, já envolvido pelo globo translúcido que fizera com parte de seu peito, a fim de manter seu amor protegido. Entregou-o ao vácuo onde flutuava.

Em pouco tempo o coração, alimentado pelo amor que o ser lhe transmitia incessantemente, cresceu, ficando cinco, dez vezes maior que ele. E assim estava no dia em que o ser fitou pela primeira vez seu reflexo no globo translúcido...

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Comentários:

Raro coração, raro. ;)

Aline | Email | 11-11-2007 22:17:53
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como o diz o meu irmão, o melhor dos três ultimos textos (ele comentou isso qd me perguntou se já tinha lido e tal). tão bonito e como tudo o que tu escreve tão cheio de emoção @@ faz com que a gente queira estar dentro deles. ;**

heluza. | 04-11-2007 01:22:45
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ao ler minha mensagem, tudo que tu precisas fazer agora é me imaginar batendo palmas... palmas... e mais palmas...

Aélsio Viégas | Email | 02-11-2007 16:06:51
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lindo! lindo! lindo! :)

Isabelle | Email | 02-11-2007 14:31:47

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