segunda-feira, 17 de dezembro de 2007

[CONTO] Dois Lagos

Two lakes de Black Sheeps

Era uma vez, numa terra distante, em um reino cujo nome perdeu-se em meio às páginas da história devoradas pelo tempo, implacável, em sua fome sem fim, uma princesa. Dela sobrou apenas sua alcunha, "A Princesa Deusa", e este conto que inicio agora, sobre sua grande descoberta, e as conseqüências desta sobre a vida de duas pessoas.

Vocês devem estar se perguntando: Mas por que ela era conhecida como "A Princesa Deusa"? Eu compreendo sua curiosidade, e já irei saciá-la. O fato é que essa princesa em particular era dona dos mais lisos e brilhantes fios de cabelo do reino sem nome, eram de um caramelo muito escuro, quase negro, que refletia a doçura de sua alma. Seus olhos, de um tom de azul brilhante jamais visto, eram como dois quasares, traçando espirais reinantes no centro de duas galáxias, adornando dois pequenos buracos negros, quase insignificantes perante aquela beleza cósmica. A maciez de sua pele ia além do mais macio dos pêssegos. Seu sorriso tinha a luminosidade do primeiro raio de sol da manhã, despontando no horizonte, inaugurando um novo dia, abrindo o caminho entre suas fofas, brancas e leves súditas, em seu lento caminhar pela abóbada celeste. Seu corpo trazia formas do mais perfeito equilíbrio, suaves, que não se sobressaiam pelo excesso, mas pela discreta e humilde distribuição das proporções. Enfim, uma beleza rara, tão rara que muitos passaram a considerá-la a filha de um deus, adotada pelo rei daquele reino, num acordo de cláusulas desconhecidas, cuja única exigência por parte da divindidade era que o monarca preservasse aquela beleza toda, sua criação mais sublime, mais encantadora e fascinante. Assim surgiu a famosa alcunha, tão famosa que foi uma das poucas informações a resistirem às presas do esfomeado tempo.

Mas, esta não é uma história apenas sobre a Princesa Deusa, ela também diz respeito a um dia muito claro, cheio de frescor e ar puro, e a fragrância de mil flores suspensa na atmosfera, sobre o farfalhar das árvores de uma floresta de grande exuberância e diversidade vegetal, e sobre um lago, sim, um pequeno lago que a princesa descobriu durante um passeio pelos arredores do reino de seu pai, quando decidiu mudar um pouco o percurso habitual, a fim de fugir da mesmice que ameaçava assombrá-la mais uma vez, e dos elogios sufocantes de ocasionais súditos que cruzassem seu caminho, sempre admirados por sua beleza.

Fugindo, talvez do medo das pessoas, que tinham receio de aproximar-se dela, intimidadas por seu lindo rosto, e suas belas formas; ou ainda de seu pai, sempre temendo por sua segurança nestes passeios que fazia sozinha, a Princesa Deusa encontrou este lago, pequeno, como já foi dito, e aproximando-se dele ajoelhou-se em sua borda, esticou pra frente seu belo rosto, a fim de contemplar-se no reflexo gerado pelas águas do lago. Para a sua surpresa, seu reflexo, tão logo surgiu na superfície, em segundos desapareceu. E pra deixá-la ainda mais surpresa, o que surgiu no espelho ondulante foi a imagem de um outro lugar, de um céu cor de vinho, e nuvens muito escuras, por onde voavam seres bem estranhos, que mais pareciam rascunhos de pássaros, tamanha a falta de capricho em seus traços. O sol era esverdeado, de uma luz muito pálida. Aquela visão deixou a Princesa Deusa não só confusa como triste. Não sabia explicar por quê, mas ela podia sentir que uma grande tristeza impregnava-se naquela paisagem diante de seus olhos. Uma tristeza profunda e densa, e ao mesmo tempo uma sensação de ausência, do tipo mais cortante, mais doloroso. E por isto, a princesa chorou, e suas lágrimas caíram sobre as águas do pequeno lago, cuja superfície ondulou sob a forma de dois círculos concêntricos, cruzando-se, formando desenhos cada vez mais expansivos e intrincados, até sumirem, mas não totalmente, pois antes disto mais lágrimas eram tristemente depositadas, reforçando o efeito ondulatório.

O que a Princesa Deusa não sabia era que aquele lago era formado por águas mágicas, e não só isto, como também que ele se aprofundava no solo da floresta, encontrando-se com um rio subterrâneo, que o alimentava. Este rio prosseguia em curvas e linhas retas, até um ponto que ninguém jamais alcançou, pois a única forma de ter acesso a ele era através do pequeno lago, e era preciso muito fôlego para prosseguir na exploração do rio, pois ele não oferecia espaço pra repor o estoque de ar. Assim, a grande e inquietante verdade, era que ninguém sabia onde aquele rio terminava.

Outro fato que a Princesa Deusa desconhecia era que, no instante em que suas primeiras lágrimas tocavam a superfície do lago, em outro lugar, próximo de um outro lago, passava um jovem. Um homem jovem, pra ser mais exato. Era magro, alto, de olhos tristes, andar lento, hesitante, postura encurvada, sobrancelhas fartas e expressivas. Usava roupas rústicas, cinzentas, camisa e calça, e um par de sapatos feitos do couro de algum animal desconhecido. Este jovem, a quem chamaremos de Olhos Tristes, na falta de um registro de seu verdadeiro nome, olhou distraidamente o lago, quando reparou que suas águas piscavam. Isto mesmo, as águas estavam piscando! Aquilo, obviamente, atraiu sua atenção. E como Olhos Tristes não tinha nada de interessante pra fazer naquele momento, resolveu dar uma olhada pra ver se descobria o que era aquilo afinal.

Para a surpresa do jovem, o que ele viu, ao ajoelhar-se diante do lago, foi o ser mais belo sobre o qual tinha dirigido seus olhos. Sua beleza e tristeza comoveram-no de tal forma que começou a chorar também. Neste instante o lago da Princesa Deusa e o de Olhos Tristes passaram a piscar sem parar, o que chamou ainda mais a atenção deles um para o outro. Os dois pararam de chorar na mesma hora, olharam-se nos olhos por breves segundos, atordoados, surpresos, assustados, e em seguida, espontaneamente, sorriram. E aquele foi o sorriso que mais apreciaram, que mais plenamente vivenciaram em suas vidas, como se suas próprias almas e corações estivessem sorrindo. E o sorriso de um foi tão contagiante para o outro que não demorou muito para começarem a rir uma risada gostosa, que pareceu torná-los mais leves, mais luminosos. O céu azul de nuvens brancas adornando a cabeça da Princesa Deus ao fundo tornou-se mais azul e branco. E o céu vinho e escuro atrás de Olhos Tristes tornou-se menos opressivo, e um pouco mais belo em sua obscuridade.

Princesa Deusa e Olhos Tristes, após chorarem e rirem juntos, e sentirem a tristeza e a alegria um do outro, sentiram uma vontade muito forte de se abraçarem, e confortarem-se, e sentirem de perto a beleza que um via no outro. Suprirem a necessidade mútua de fugirem dos mundos nos quais viviam, cada qual restritivo à sua maneira. Mas, não puderam evitar a lembrança da lenda que contavam sobre o lago, lenda esta que também existia no mundo de Olhos Tristes.

A vontade de abraçarem-se e beijarem-se, concretizando o amor que tão pouco tempo levou para germinar e espalhar suas raízes em seus corações, tornou-se uma dor incômoda e aguda em suas almas, um peso em seus estomagos, uma pressão muito forte em suas cabeças. Como iriam transpor as barreiras impostas pelo rio subterrâneo, uma viagem sem volta? Arriscariam um mergulho, confiando na força fornecida por seu intenso e repentino amor? Valia a pena arriscarem-se? Valia a pena morrerem por aquele amor tão puro, mesmo que jamais conseguissem se tocar? Suas vidas eram um preço justo?

Princesa Deusa e Olhos Tristes estavam desesperados, procurando agarrem-se em qualquer filete de esperança que surgisse diante deles. Seus corações batiam aos pulos. Havia uma inquietação insuportável no ar, como a que precede uma notícia que todos esperam, mas que ninguém quer ouvir como confirmação de suas suspeitas.

...

Eles tinham que fazer! Não importava como, mas eles tinham que se encontrar, se tocar, se amar, mesmo que por um segundo!

Ergueram-se. De pé, resolutos, despiram-se inteiramente. Ela exibindo o esplendor divino de sua beleza totalmente exposta àquela luz que só tornava cada sutileza de seus traços mais nítida. Ele exibindo seu corpo esguio, seus braços, pernas, peito e púbis cobertos por pêlos que apenas ressaltavam a brancura de sua pele virgem de sol, como a dela, porém menos aveludada. E num impulso saltaram, mergulhando nos lagos. Nadaram empregando o máximo de suas forças, procurando economizar o quanto podiam de cada porção de ar em seus pulmões. Nadaram muito, exaustivamente, fazendo curvas, desviando-se de pedras, esbarrando em algumas, cortando-se, escoriando-se, mas jamais parando. Não saberiam dizer por quanto tempo nadaram, mas num certo ponto, já não agüentavam mais.

O ar estava no fim. Seus corpos cheios de cortes, hematomas e raspões. Seus braços e pernas estavam dormentes, duros como rochas. Não conseguiam mais avançar.

Sem muito o que fazer, sem esperanças e forças, nem chorar podiam, pois tudo que tinham em si fora usado no grande combate contra as águas traiçoeiras do rio subterrâneo. Com o pouco que lhes restava, foram capazes apenas de levar suas mãos ao peito, fechar os olhos, e sentir as últimas gotas de vida serem absorvidas por aquele verdadeiro mar que os separava. Em poucos instantes, dois mundos apagaram-se. Duas chamas deixaram de existir, engolidas pela escuridão...

...

Mas, um instante é só um instante, e sempre vem acompanhado do seguinte. O tempo prossegue, os mundos jamais deixam de existir inteiramente, apenas mudam, transformam-se, evoluem para mais formas em uma metamorfose infinita. E algumas chamas que se apagam podem reacender, reascendendo sentimentos, lançando tentáculos de esperança, que se esticam o quanto podem, esroscam-se um no outro, num nó que espada alguma seria capaz de desatar, tamanho o seu hermetismo. Um nó que amarra destinos, duas almas destinadas ao amor, a tornarem-se mutuamente mais belas, e com sua beleza salvar dois mundos, unir dois mundos, fundi-los, tornando tudo um doce e eterno abraço do mundo em si mesmo, amando-se no amor de dois seres, dispostos a abarcar tudo em seu amor, e salvar a humanidade do dilúvio vindouro e purificador.

Princesa Deusa e Olhos Tristes se tocaram pela primeira vez naquele mundo de aquática magia, no ponto onde os dois lagos nasciam, onde dois mundos se tocavam intimamente, abrindo e fechando o ciclo de eterno êxtase, prazer, e amor, o maior de todos, de divinas proporções. E assim viveram, felizes... para sempre!

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Comentários:

Amém!

Wolv | 21-12-2007 19:30:17
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E que esse conto de fadas perfeito seja apenas o primeiro de uma série de outros que estão pra nascer. E que a vida torne-se um espelho dele...

Princess | 20-12-2007 16:32:56

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