quinta-feira, 25 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 1ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

O Homem Absorvente era um rapaz que já nasceu muito magro. Sua magreza era tanta que parecia um esqueleto coberto por uma fina camada de pele. Seus pais ficaram desesperados quando viram pela primeira vez aquela criança tão raquítica sendo carregada pela enfermeira até o lugar vago ao lado do leito da mãe, cujo rosto ainda estava muito inchado e vermelho. Nasceu de parto natural, mas nem exigiu muito esforço da parte dela para que fosse entregue ao mundo. "Foi como fazer xixi", dizia ela.

A partir de então os pais do Homem Absorvente, que na época era conhecido apenas como Gutinho, e o pediatra responsável pela saúde da criança, passaram a correr atrás do melhor tratamento para curar sua subnutrição. "Mas eu comia tanto enquanto estava grávida dele!", desesperava-se a mãe, chorando inconformada. "Vai ficar tudo bem, meu amor. Logo o Gutinho vai estar todo rechonchudo", consolava o pai.

Tentaram as mais variadas combinações de nutrientes, vitaminas, proteínas, sais minerais, carboidratos, gorduras, açúcares. Aos 3 anos Gutinho comia feito um boi, aos 5 como um filhote de elefante, aos 8 como um hipopótamo adulto, mas jamais engordava, jamais se livrava daquela magreza cadavérica.

Até que um dia, ouvindo mais uma das lamentações da mãe, Gutinho perguntou a ela: "Você tá triste por minha causa de novo, né?". A mãe o olhou e começou a despejar: "Sim, eu estou! Você não tem idéia de quanta tristeza me causou desde que nasceu! Quantas noites sem dormir, quanta dor e sofrimento! Quantas brigas eu tive com o seu pai por sua causa, quando o dinheiro acabava. Porque ele todo ia pra sua comida, sabia? Deixamos de pagar muitos aluguéis por causa da sua maldita doença! Sabe que às vezes eu acho que você faz de propósito? É sim! Às vezes eu fico pensando: 'Será que ele tá comendo mesmo? Será que ele tá mantendo a comida no estomago? Será que ele não tá vomitando tudo enquanto não prestamos atenção?' Eu já pensei seriamente em te espionar, só pra ter certeza que você não tá jogando fora tudo que come. Você não pensa em nós?! É egoísta a este ponto?! Até deixar de comer o necessário nós deixamos! Olha a minha magreza! Eu costumava ser gordinha até uns 4 anos atrás! Agora sou só pele e osso! É isto que você quer? Fazer com que todas as pessoas que se importam com você fiquem iguais a 'isto' que você é?! Sabia que seu pai tá querendo nos deixar?! É, ele não aguenta mais! Disse que já tá cansado de gastar todo o dinheiro dele com um filho que não engorda nunca e com anti-depressivos pra mulher, que virou uma 'morta-viva'! É disto que ele me chamou esses dias, de 'morta-viva'! Você... (snif!) tem noção do que é ser chamada disto... (snif!) pra uma mulher como eu... (snif!) que sempre foi vaidosa?" e por fim desabou em um choro convulsivo. Não enxergava mais nada, só uma cachoeira de lágrimas.

Gutinho, após ouvir tudo aquilo, inicialmente ficou mudo, assustado, sem ação. Em seguida achou que devia dizer algo pra fazer sua mãe se sentir melhor, mas quando ia arriscar alguma frase, ela ficou engastalhada nos últimos neurônios responsáveis por passar a mensagem do cérebro para os pulmões, as cordas vocais, língua e narinas. O motivo do engastalho foi que Gutinho sentiu uma coisa estranha dentro dele, mais especificamente no estomago. Foi como um soco vindo de dentro pra fora, ou melhor, como se largassem lá dentro um saco enorme cheio de pedras. E não foi só isto! Gutinho sentiu-se enchendo como um balão, mas não de forma leve. Achou que estava prestes a vomitar, pois fazia isto quase sempre que comia qualquer coisa (a mãe estava em parte certa em suas suspeitas), mas não porque queria, e sim porque tudo que ingeria lhe fazia mal.

Quando terminou de chegar no banheiro, e virou a fechadura, sentiu uma explosão dentro de si, que pareceu percorrer o corpo todo. Sua barriga inchou na hora, logo em seguida seus braços e pernas e bochechas. Olhou no espelho espantado: estava com um aspecto menos esquelético. Na verdade ainda estava magro, mas sua magreza tinha uma aspecto mais natural, sem todas aquelas saliências ósseas, quase como ripas de madeira sustentando uma cabana feita de pele bem fina. "O que aconteceu comigo?"

Saiu do banheiro temeroso de que fosse visto pela mãe, e que ela estranhasse a aparência que tinha agora. Por isto correu direto pro quarto, revirou o guarda-roupa até achar as peças mais largas que tinha, e vestiu-as. "Acho que dá pra eu despistá-la com estas." No espelho inteiriço admirava-se vestindo uma blusa de manga comprida marrom, bem larga, e uma calça de moletom cinza. Pra completar vestiu seu maior par de tênis, e quando achou que já estava bem "disfarçado de si mesmo 5 minutos atrás", saiu do quarto, e foi testar seu truque.

Assim que chegou na sala o pai acabou de entrar pela porta da rua. Pelo semblante parecia exausto. "Oi pai." "Oi filho..." "Como foi seu dia hoje?" "O de sempre..." "Hmmm..." O silêncio deu uma volta completa em torno da sala de visitas, gastando tempo suficiente para o pai descalçar os sapatos, tiras as meias, desafivelar o cinto, desabotoar 4 botões da camisa, largar o corpo na poltrona, esticar as pernas, e jogar a cabeça pra trás. "Quer falar sobre ele?" "Sobre o quê, filho..?" "Seu dia." "Pra quê..?" "Pra saber o que você fez." "Eu trabalhei..." "Eu sei disto." "Então por que perguntou..?" "Quero saber o que você fez no trabalho." "O mesmo de sempre..." "E nada mais?" "O que por exemplo?" "Algo fora do comum." "Fora do comum..." "É." "Você diz, além do que eu geralmente faço pra sustentar vocês..?" "Sim." "Correção: você!" "É." "Ah, pelo menos você admite!" "A mamãe falou que você gasta todo o dinheiro que ganha comigo." "Ah tá! Então agora finalmente estamos jogando sem trapaças..." "Não entendi." "Tá, se é pra ser sincero, botar todas as cartas na mesa..." "Que cartas?" "Sabe o que mais eu fiz no trabalho hoje, filho?" "O quê?" "Eu comi a Sônia!" "Comeu?" "Sim, eu comi! Transei! Fiz sexo com ela, como tenho feito quase todos os dias!" "Sexo?" "Aham! Sua mãe nunca te contou como você nasceu?" "Eu já aprendi isto na escola." "Então por que o espanto?" "Você não devia fazer isto só com a mamãe?" "He! Sim, eu DEVIA, mas não faço mais!" "Por quê?" "Porque ela não QUER mais!" "Por quê?" "Porque ela não vive mais. É uma morta-viva!" "Ela disse isto também." "Ah é? E o que mais ela disse? Por acaso disse que já tentou se matar... (deixa eu ver...) umas 7 vezes?" "Não, isto não." "Pois é, ela tentou. Tava afim de se livrar de nós, ou melhor, de você, do jeito mais fácil, a covarde." "Por quê?" "Porque ela não aguenta mais! Porque ela também já cansou da merda que virou nossa vida desde que você nasceu! Porque ela não se sente mais bonita (e nem é!) como antes! Porque ela sabe que eu não a quero mais, e que por isto eu tô trepando com a Sônia, e querendo me separar dela, de vocês dois. Quero me ver livre de vocês, do suplício que vocês são! Do peso morto que são os dois. Eu não aguento mais também, e não quero ficar como ela ou como você! Eu quero viver! Quero alguém que faça eu me sentir vivo, e não ter que voltar pra essa porcaria de casa que mais parece uma tumba enorme com dois cadáveres esperando o dia inteiro pra me assombrar no final dele, justamente na hora em que eu quero um pouco de descanso, um pouco de paz e sossego! Aliás! Quer saber? Não vou dormir aqui hoje! Vou pro apartamento da Sônia! Lá pelo menos vou encontrar um pouco de paz e prazer, duas coisas que andam em falta por aqui há anos!" e pegou numa mão os sapatos, na outra as chaves do carro, levantou-se, andou até a porta, descalço mesmo, saiu por ela, e a bateu com força.

Quando o silêncio resolveu dar uma nova volta pela sala de visitas, Gutinho sentiu o mesmo peso enorme no estomago, como o de minutos atrás, correu novamente pro banheiro, e chegou a tempo de ver sua barriga inchar mais uma vez, numa explosão, e espalhar todo o inchaço para o resto do corpo. No espelho sobre a pia olhou seu rosto: estava inchado como o rosto de sua mãe quando acabara de lhe dar à luz (embora ele não soubesse disto). Despiu-se todo e descobriu que estava assim também nos braços, pernas, barriga e nádegas. "Como eu engordei tanto em tão pouco tempo..? Primeiro depois de falar com a mamãe, e agora depois do papai falar comigo. Será que foi isto?"

Gutinho passou aquela noite trancado no quarto, insone, pensando em como explicaria a seus pais como ele havia engordado em questão de minutos o tanto que ele jamais engordou em seus 13 anos (a idade que tinha naquela noite tão significativa pra sua vida).

Já nascia o dia quanto resolveu aproveitar as primeiras horas da manhã, com o céu metade estrelado e metade "endiarado", pra sair de seu quarto, tomando muito cuidado pra evitar qualquer ruído que pudesse acordar sua mãe (ela dormia pesadamente na enorme e solitária cama de casal, no quarto ainda escurecido pelas grossas cortinas da janela, as quais impediam qualquer fóton solar em sua investida para invadir o quarto, e salvá-la da prisão noturna). Assim que chegou na sala de visitas, abriu a fechadura da porta da rua o mais rápido e silencioso que pôde, e abandonou seu lar.

Vocês devem ter estranhado o final do parágrafo anterior, mas já adianto explicando que, antes de sair, Gutinho havia pego sua mochila, tirado dela todos os cadernos e materiais escolares, e no lugar posto o maior número de camisetas, calças, bermudas e cuecas que pôde enfiar lá dentro. A tal mochila não foi citada na cena porquê, antes de sair do quarto, ela foi jogada pela janela, bem em cima de um arbusto no jardim. E é justamente neste jardim que iremos reencontrar Gutinho agora, chegando até o tal arbusto pra pegar a mochila omitida no parágrafo anterior.

Sim, ainda falta descobrirmos o motivo pelo qual Gutinho resolveu fugir de casa. Mas, garanto que não irá demorar até que isto aconteça. Por enquanto basta saber que ele pôs a mochila nas costas, e começou a andar pela cidade sem rumo certo, olhando aquelas ruas madrugadamente vazias, tomando seu primeiro banho de sol, esperando pacientemente que mais pessoas viessem fazer companhia a Gutinho em sua tarefa de pisá-las. Mas, estamos nos desviando demais do protagonista, que àquela hora, mesmo após passar a madrugada inteira acordado, não dava sinais de cansaço. Pelo contrário, estava animadamente disposto a, literalmente, seguir em frente com seu plano. "Já que meus pais não devem descobrir, vou fugir de casa." Sim, foi simples assim. Nada muito pretensioso, é verdade, mas temos que admitir que havia sido uma idéia bem... objetiva, embora um tanto... vaga! "Mas... pra onde eu fugo?" E foi depois deste pensamento que Gutinho parou diante de um homem deitado no chão, roupas imundas e rasgadas, barba de uma semana, uma aura alcoólica envolvendo-o por completo, olheiras profundas, acabando de despertar.

Gutinho agachou-se, e começou a encarar aquele homem. O cheiro de álcool pareceu quadruplicar àquela distância, mas não o incomodou. "Olá!" "Hrunf..?" "Como foi sua noite?" "Q... Quem é você, muléqui?" "Guto. Alguns me chamam de Gutinho" "Quêqui cê tá fazendu aqui?!" "Fugindo de casa." "Pur quê?" "Porque meus pais não podem saber que eu engordei." "U quê?!" "Eles não podem saber que..." "Quêqui tem qui cê ingordô?" "Não entendi a pergunta." "Qualé u grandi pobrema di você tê ingordadu?" "Fui muito magro minha vida inteira, daí ontem eu engordei." "Ontem?" "É." "Pur que só ontem?" "Ainda não sei. Acho que é porque meus pais ficaram chateados comigo." "Hahaha! Tu tá malucu, muléqui? Ninguém ingórda pur issu não!" "Então como eu engordei?" "Ieu é qui vô sabê? Tenhu pobrema dimais pra resolvê pra ficá mi preocupânu cum muléqui qui fogi di casa purquê ingordô!" "Que problema?" "Tu tá tirandu cumigu, né?" "Tirando?" "É!" "Como assim?" "Cê tá querênu mi sacaniá, né?" "Sacanear?" "É! Cê tá pensandu u que? Qui eu vô acreditá qui você qué ouví meu pobrema?" "Mas eu quero!" "Ah! Vai contá essa pra ôtru, vai!" "Por que contar pra outro?" "Purquê eu num tô a fim de sê sacaniadu!" "Não quer falar sobre os seus problemas?" "I pra quê eu vô perdê meu tempo falando deles pra você?" "Porque eu quero saber." "(...) Você é bem estranho, muléqui..." "Por quê?" "Purquê muléqui da sua idade num sai pur aí a essa hora fugido di casa i pára pra cunversá cum caxacêru. Muitu mênus pédi pra êli contá us pobrema dêli." "Mas eu quero que conte!" "(...) Tá legal. Se você qué mêsmu sabê, eu côntu..." "Sim." "Mais dipois num reclama!" "Tá." "Minha vida sêmpri foi uma bosta, na verdadi..." "Por quê?" "Purquê u filhu da puta du meu pai largô minha mãe i us meus 7 irmão pra ficá cum uma muié mais gostosa i mais nova qui a minha mãe." "Gostosa?" "É. Mais bunita!" "Ah tá. Meu pai fez isto com a minha mãe também." "Ah, intãu você sabi qui merda é issu." "Acho que sim." "Mais num foi só istu qui feiz minha vida sempri sê uma bosta." "O que mais?" "Minha mãe era faxinêra, num ganhava u tantu qui precisava pra compra di cumê pra genti, daí num demorô muitu pra virá puta..." "Puta?" "É. Saí pur aí oferecendu u rabu e a buceta pra hômi im troca di grana." "Sua mãe tem rabo?" "Ah, ela tinha! I dus grandi! Já morreu a coitada..." "Morreu de quê?" "Foi fazê boquéti num gringo i ingasgô cum a porra dele." "O que é boquete?" "Ah, isquéci, muléqui! Tu ainda é nôvu dimais pra ouvi essas coisa!" "Mas eu quero ouvir!" "Tá, tá... Enquanto ela tava viva a genti até qui tava numa boa. A grana tava entrandu mais fácil que us pau entrava na bunda dela." "Pau? Os homens batiam nela com pau?" "Alguns batia." "Nossa! E ela não machucava?" "Machucá machucava, mas ela já tinha se acostumadu." "Coitada..." "É, pois é. Mais pêlu mênus a genti tinha du quê cumê. Só qui dipois ela morreu, a grana parô di entrá, meus irmão foro um pra cada ladu, um virô traficante, dois morreru, e us ôtrus tão pur aí caçando algum quebra-galhu pra fazê, pedinu ismóla, vendenu picolé in carrinhu... Tem um qui eu ouvi falá qui tá seguinu a profissão da mãe. Chupânu pau di gringu in troca di grana. Mais issu eu num faço nem mortu!" "Deve ser estranho chupar pau..." "É nojento!" "Se bem que eu nunca provei..." "Ah, nem arrisca, muléqui! Vai qui cê toma gostu!" "Não sei. Madeira não deve ser ter um gosto bom." "Madeira...? (...) Pff..! HAHAHAHA! Boa, boa..!" "Não entendi." "Olha... brigadu pur ficá aí sentadu ouvinu meus pobrema. Foi legal da sua parti." "Eu também gos..." e sentiu aquele baque seco e pesado no estomago.

Sua barriga inchou na hora. "Quêquié issu, muléqui?! Tá passanu mau?" "A-acho que... tô engordando de novo!" O inchaço espalhou pelo corpo, e em poucos segundos Gutinho estava três vezes mais gordo que no início da conversa com o mendigo. "É assim que você ingórda?" "É..." "Tu é bem istrânhu mesmu, muléqui." "Acho que sim.." "Óia, eu até ti levaria num hospitau agora, mais ainda tô tontu dimais pra ti acompanhá..." "Não precisa, eu tô bem agora." "Certeza?" "Sim. Só fica ruim no começo. Depois volta tudo ao normal." "Óia muléqui, isso qui ti aconteceu agora é tudu, mênus normau." "É, acho que tem razão." "Tu divia procurá um médico." "Talvez." "Mais, é você qui sabi u qui faiz da sua vida." "Eu sei." Os dois compartilharam um silêncio e dois olhares vazios, e depois... "Já vou indo." "Tá bão. Boa sorti na tua fuga, muléqui. Vai precisá." "É, acho que sim." "Pode acreditá." "Sim." e Gutinho seguiu em frente.



(continua...)

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Comentários:

Não sei pq... ou talvez eu saiba, mas esse texto nunca me passou uma boa impressão... Não gosto dele, do que ele representa, do que ele mostra... e principalmente das sensações que ele traz. Não é do tipo beleza triste... ele é feio, vazio, apesar de bem escrito.

Tati | 27-12-2008 15:33:49
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Bom...

Aélsio | Email | 27-12-2008 14:02:14

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