terça-feira, 30 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 5ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

Leia a , , e parte.

Depois de vestir-se com uma camiseta e uma calça, que Cris pegou de sua mochila, Guto subiu de volta pra cabine do caminhão. Estava bem magro agora. As roupas largas no seu corpo. "É assim que você era?" "Sim." "E agora, garoto? O que pretende fazer?" "Não sei. Acho que vou seguir o conselho da Cris. Vou tentar descobrir como posso ajudar as pessoas com isto que eu tenho." "Vai virar um super-herói agora, é? Hehehe!" "Eu só quero fazer as pessoas se sentirem bem. Fazer com que se sintam menos pesadas. Que elas chorem muito se isto fizer com que sorriam depois." Cris sorriu neste instante. Abraçou Guto com ternura. "Eu te amo, Guto." "Também te amo, Cris." "Hehehe! Hoje em dia o mundo anda tão corrido que até o amor é plantado numa manhã e nasce antes que o sol se ponha..."

Depois daquele dia decisivo na vida de Guto, Cris e Antenor, passaram-se 7 anos. O casal de adolescentes morou por um tempo com Antenor e sua esposa Sofia (o filho deles, Felipe, fazia faculdade em uma cidade maior). Cris arrumou um emprego como vendedora de uma loja de roupas, e Guto como empacotador de um supermercado. Eram tratados como filhos pelo caminhoneiro, e foram apresentados como sobrinhos dele, filhos de um irmão de Sofia que vivia afastado da família, e que incumbiu-os de cuidar dos dois. Não durou nem um ano a farsa, pois Guto e Cris não conseguiam conter seus desejos e sentimentos um pelo outro. Antenor confessou que havia mentido, e passou a dizer que eram adolescentes órfãos que ele e a esposa resolveram adotar. Como a cidade era pequena, e Antenor gozava de ótima reputação na comunidade, jamais o importunaram com questões legais.

3 anos depois de chegarem, Guto se tornou caixa do supermercado e Cris acabou promovida a gerente, tamanha sua eficiência como vendedora. Alugaram uma casa. Guto ficou noivo de Cris um ano depois. Nove meses se passaram e nasceu Sueli, que ganhou o nome da tia falecida de Cris. Pro alívio de Guto, era uma criança saudável. Antenor morreu no ano seguinte num acidente. Após o enterro, Guto estava enorme. Teve que ir do cemitério direto para o lugar onde habitualmente descarregava-se: o ferro velho de Tales, amigo antigo de Antenor. Seu grito acelerou em dez vezes a oxidação dos metais, rachou ainda mais a terra seca do terreno, e com sorte não secou todos os fluidos corpóreos de um gato que fugiu segundos antes de ser pego pela onda de choque. Foi um grito e tanto aquele. Ficou meses sem visitar Sofia. Mais dois gritos semelhantes àquele e corria o risco de acabar com o negócio de Tales. "Antenor não ia gostar disto."

Uma semana antes de Sueli fazer 1 ano, Cris tornou-se sócia da loja de roupas de sua já amiga Flávia. Fizeram a melhor festa infantil de que a cidade teve notícia em décadas, segundo o entusiasmado comentário do prefeito Toledo, que tornou-se muito amigo de Guto, após algumas partidas de xadrez na casa de Antenor, quando este ainda era vivo. Aprendeu a respeitar o rapaz após ser vencido por ele em 3 partidas seguidas. Era um recorde, tendo em vista que só havia sofrido 2 derrotas de uma só pessoa, as 2 únicas, jogando contra Sofia. Depois da morte do marido ela parou de jogar com o prefeito, que acabou tendo como único adversário Guto. Graças a isto ficaram amigos, e após o aniversário de Sueli, Guto virou secretário do prefeito, quando sua antiga secretária pediu demissão, pois estava de mudança pra França, onde o filho, um médico em ascensão, havia comprado uma casa pra ela, viúva há 5 anos. O prefeito lamentou muito, pois era sua amante mais antiga, mas Rute, a secretária, amava mais o filho do que ele. E além disto, já estavam muito velhos pra essas aventuras, dizia ela insistentemente nos seus últimos encontros às escondidas no porão da prefeitura. "Essa poeira toda nunca me fez bem", dizia.

"Mas", vocês devem estar se perguntando agora, "então Guto viveu 7 anos de uma vidinha mundana, e no final não fez nada pra usar seu dom/maldição pra ajudar as pessoas?" Já chegamos lá. Em primeiro lugar, Guto, ao longo destes 7 anos, procurou ser um dos habitantes mais sociáveis daquela cidadezinha de interior que o adotara após sua fuga. Conhecia praticamente todos os seus habitantes, e fez com que tal conhecimento abrangesse as mais íntimas camadas de suas vidas. Por isto, em pouco menos de um ano já sabia da vida pública e particular de boa parte daquelas pessoas, graças aos apontamentos de Antenor e Sofia. Como Antenor sempre promovia festas em sua casa assim que voltava de suas viagens, Guto constantemente tinha a chance de conhecer um pouco melhor cada personagem daquele seu refúgio. E o emprego no supermercado como empacotador também ajudou muito, pois além de ser o único supermercado da cidade, também era a pista onde desfilavam cada um dos astros daquele microverso onde vivia. Não demorou muito para que conhecesse cada um dos clientes do estabelecimento. Alguns o convidavam para festas, reuniões de amigos, pescarias, caçadas. E quando sentia-se suficientemente a vontade com alguém, não hesitava em cumprir parte de sua missão, e saciar sua necessidade ao mesmo tempo que ajudava a pessoa. Ouvia cada lamento, cada reclamação, cada choro ou soluço contido, e abraçava, muito, quando não encontrava remédio melhor, quando não havia represa que pudesse conter cachoeiras de lágrimas doloridas e cheias de tristeza. Virou cúmplice, confessionário e confidente daquela cidadezinha inteira, e assim foi por 7 anos.

Um dia chegou em casa, beijou Sueli na bochecha, enquanto se entretia com dois bloquinhos de plástico no cercadinho. Beijou Cris nos lábios, enquanto esquentava a janta, tomou um copo de suco de laranja (estava calor), sentou-se na mesa no meio da cozinha, e disse: "Vou embora, Cris." Tudo ficou em estado de suspensão por exatos 5 segundos. "Embora? Como assim 'embora'?" "Não tenho mais o que fazer aqui. Já ajudei todos com seus problemas. O ferro-velho do Tales já não dá conta de receber tanta carga." "Guto, isto não é motivo pra ir embora. Os problemas nunca acabam, querido. Sempre surgem novos problemas todos os dias." "Eu sei, mas já não me sinto mais tão útil aqui. Sinto que já fiz o que devia ser feito. Que agora sou necessário em outro lugar." "E que lugar seria este?" "Não sei. Mas não é aqui. Não mais." "Quer fugir de novo, é isto?" "Não, só quero descobrir onde sou necessário." "E nós, Guto, como ficamos? Quer que a gente vá junto?" "Não. Eu não pediria isto a você." "Por que não?" "Porque não quero atrapalhar sua vida agora." "E você acha que não vai atrapalhar nos abandonando?!" "Não sei." "Não é isto que seu pai fez com você e sua mãe há 7 anos atrás? Não foi isto que o fez fugir de casa?" "Fugi de casa porque tinha medo do que eu era, e medo de como meus pais lidariam com isto. Agora não tenho mais medo do que sou." "Meus parabéns! Agora só falta se reconciliar com seus 'maravilhosos' pais!" "Talvez..." "E depois? Vai fazer o quê? Voltar pra eles? Acha mesmo que eles estão dispostos a aceitar você tantos anos depois?" "Não sei. Mas não pretendo voltar a morar com eles." "Ah, pelo menos sobrou um pouquinho de bom senso nessa sua cabecinha." "Por que tá falando assim comigo?" "Assim como? Como uma mulher que acaba de ouvir que o marido tá afim de largar ela e sua filha pra realizar a 'volta do filho pródigo' e depois sair pelo mundo como um salvador fajuto?" "Você sabe que eu posso ajudar as pessoas." "Aham! Eu sei! Mas será que pode fazer isto ao mesmo tempo que ajuda sua família a manter-se completa, intacta?" "Cris, eu amo você e a nossa filha! Mas você precisa entender que eu preciso fazer isto. Não nasci com este poder a toa." "Ai, que lindo! Vai, diz a frase mágica agora! 'Com grandes poderes...'" "Por que você tá fazendo isto, Cris? Por que tornar tudo tão difícil? Não foi você que me encorajou 7 anos atrás a usar meu dom pra ajudar as pessoas?" "Eu errei! Era só uma adolescente idiota apaixonada por um garoto que tinha acabado de me livrar do peso da culpa e remorso que eu sentia por ter deixado meu pai transar comigo!" "Você não deixou, e sabe disto." "Não importa! Isto passou! Foi há 7 anos! As pessoas mudam! Eu mudei, evoluí, amadureci! Tenho uma vida decente agora, uma filha! Nós nos CASAMOS, Guto! Se esqueceu deste 'pequeno' detalhe? Somos marido e mulher, 'até que a morte nos separe'!" "Eu sei, mas..." "Mas agora você tá afim de salvar o mundo! Quer que eu passe sua capa vermelha, querido? Só espera o ferro esquentar, tá?" "Cris, não precisa ser assim..." "MAS ESTÁ SENDO! Você está fazendo com que seja! Esquece aquilo que eu te disse há 7 anos, tá? É passado! Não tem mais importância! Nossa vida é esta agora! Já passou a época de corrermos atrás de sonhos juvenis, de... Delírios adolescentes! Somos adultos agora, Guto! Comporte-se como um! Pense na sua filha, que nem completou 2 anos! É isto que você quer ser? Um pai e marido ausente, como o Antenor? Lembra do quanto a Sofia chorava quando ele ia embora? Ela nunca se acostumou! O que te faz pensar que será diferente pra mim?" "..." Cris aproximou-se do marido, abraçou-lhe bem forte, beijou-lhe carinhosamente nos lábios. "Seu futuro é ao nosso lado, Guto. Sua missão é manter nossa família unida. Somos só nós três. Não subtraia um elemento tão importante de nossa equação. Eu não suportaria isto." "Tudo bem, querida. Eu fico..."

Guto não conseguiu dormir naquela madrugada inteira. Tinha a cabeça cheia de cenários, probabilidades, suposições sobre o que deixaria de fazer permanecendo ali, ao lado da esposa e da filha. Ao mesmo tempo pensava no sofrimento que causaria a ambas, o que ia contra os seus princípios. "Meu poder é justamente pra poupar as pessoas de parte do seu sofrimento. Seria injusto se eu fizesse com que as duas pessoas que mais amo sofressem por minha causa." Estava diante de um dilema: sacrificar sua família em prol da salvação de muitas pessoas, ou permanecer ao lado de Cris e Sueli, impedindo que seu poder cumprisse sua função no "plano geral do mundo."

Começou a sentir fortes dores no estomago, que a cada hora se tornavam mais intensas. O estomago pulsava. Tentava comprimi-lo, procurando uma forma de conter as dores, mas era inútil. Tudo foi se tornando mais lancinante e insuportável a cada segundo. Correu para o banheiro. Sua barriga estufou-se. Estava negra. "O que é isto?! Eu nunca fiquei assim!" Suas veias estavam estufadas também. Pulsavam perceptivelmente. O estomago agora queimava. Sentia-o muito pesado. Suava sem parar. Tentou correr pra fora de casa. "Preciso chegar ao ferro-velho do Tales!" Mas mal deu um passo. Estava tão pesado que era incapaz de sair do lugar. "Não! Não pode ser aqui! Aqui não!" Uma veia subitamente estourou, um esguicho de sangue lavou um pedaço da parede de azulejos brancos do banheiro. "Oh, meu Deus! Me faça suportar essa dor!" Era inútil, a dor aumentava a cada segundo. O inchaço na barriga borbulhava, tornava-se mais negro, tumorado. Por fim não aguentou mais, soltou um grito que soou como o uivo de um animal, ou melhor, como o guincho final de um porco sendo lentamente decaptado. Perdeu os sentidos logo depois.

Abriu os olhos. Viu azulejos amarelados, rachados, envelhecidos. Uma mancha de sangue seco. Olhou a barriga: estava murcha, seca. Levantou-se, caminhou com dificuldade até seu quarto. Ergueu o lençol pra deitar-se ao lado da esposa: no lugar dela encontrou uma múmia, pele seca sobre ossos. Julgou-se num pesadelo. Correu até o berço de Sueli. Encontrou um corpo infantil mumificado. Olhou ao redor, atrás de uma ponta solta do tecido daquela realidade absurda para que pudesse rasgá-la em mil pedaços, negá-la. Só encontrou o interruptor. A luz acendeu-se. O relógio marcava 4:15 da manhã. As paredes estavam rachadas, descascadas, manchadas. Parecia uma casa centenária (morava nela há apenas 4 anos, e fora construída um ano antes de alugá-la). As múmias ali permaneciam. Lembrou-se subitamente de uma voz masculina longínqua, dizendo em sua mente "...essa porcaria de casa mais parece uma tumba enorme com dois cadáveres esperando o dia inteiro pra me assombrar..!"

...

6h00 da manhã. Guto estava de mochila nas costas. Saiu de casa às 6h02. Às 6h11 já estava na saída da cidade. Às 6h47 um caminhoneiro caridoso lhe ofereceu uma carona. Estava 30 quilos mais gordo após ouvir do tal que estava com câncer há 7 anos. Os médicos tinham garantido apenas 2 ou 3 meses de vida pra ele na época. "Tô vivendo no lucro! Acabou que um amigo meu morreu antes de mim num acidente. O cara era a saúde em pessoa... Perdi tudo na época querendo pagar todas as minhas dívidas. 3 meses depois acabei ganhando uma grana boa na loteria. Não foi muito porque mais uns 6 ou 7 ganharam junto comigo, mas pelo menos deu pra comprar um caminhão novo e uma casa." "Você tem sorte." "É, eu diria que sim." "Mundo estranho esse..."

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In the road again.

Aélsio | Email | 30-12-2008 21:55:51

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