quarta-feira, 17 de junho de 2009

[CONTO] As Árvores da Memória - Capítulo 1

White Corridor de alitrav

Estava deitada, encolhida num canto. Usava um vestido laranja que combinava perfeitamente com seus cabelos flamejantes. Acordou, espreguiçou-se, sentiu-se leve dentro da roupa macia e confortável, e notou que além de seu tecido nada mais cobria seu corpo por baixo. Em seguida veio o frio, que começou dos pés descalços, subiu pelas pernas, passou pelo ventre, percorreu o tórax, espalhou-se pelos seios de mamilos endurecidos, e deles fluiu para os braços, para a nuca, cujos cabelos arrepiaram-se, alastrando seu arrepio para cada pêlo do corpo abaixo.

Sentia-se praticamente nua diante daquele frio, branco e estéril corredor que abria-se à sua frente. As paredes, o teto e o chão emitiam uma luz pálida, e não apresentavam qualquer tipo de lâmpada como foco de luminosidade, embora estivesse uniformemente iluminado. O teto com as paredes, e estas com o chão uniam-se não em ângulos retos mas em curvas suaves. Na hora em que preparava-se para dar um impulso flexionando as pernas a fim de levantar-se, seus pés escorregaram no chão, em um declive arredondado. Foi só então que notou que o local onde estivera deitada tinha a forma de uma meia-esfera, para a qual as curvas formadas pelo encontro entre as paredes, o teto e o chão do corredor à frente convergiam, fechando-se.

Engatinhou até o ponto mais próximo onde o chão era plano, e tentou novamente pôr-se de pé. Conseguiu. Deu uma olhada mais atenta ao lugar onde dormia e constatou não apenas que era perfeitamente esférico, como também que não fazia a menor idéia de como havia chegado até ali. Olhou uma segunda vez para o confortável vestido laranja, e não conseguia recordar-se de como e onde o conseguiu. Tateou seus cabelos levando um chumaço até o alcance dos olhos: eram ruivos, ondulados e brilhantes. Não os reconhecia. E assim foi com a branca e pálida pele de seus braços e pernas, muito macia e sedosa. Olhou dentro do vestido e não reconheceu aqueles seios do tamanho de maçãs, com pequenos mamilos rosados. Olhou seu sexo, coberto por um triângulo simétrico de ponta cabeça formado por pêlos ruivos, mas a ignorância sobre si mesma prevaleceu. Na falta de um espelho, apalpou o rosto, construindo em sua mente um desenho tridimensional rústico dos traços tateados. Tinha o nariz pequeno, fino. A boca era de lábios modestos, nem muito estreitos, nem grossos demais. O queixo mal chegava a três dedos, fazia uma elegante curva para trás, e trazia em si um raso furinho. As sobrancelhas eram discretas, harmoniosas. As bochechas tinham carne o bastante para não voltaram-se pra dentro. Imaginava-as um pouco rosadas. A face era oval. Concluído o auto-retrato mental, já podia pelo menos enxergar-se como superficialmente bela. Faltava descobrir de que ingredientes era feita tal beleza.

Sem contar por hora com mais recursos para prosseguir em sua busca por si mesma, voltou a encarar o branco corredor, e decidiu seguir adiante. Andou por alguns metros até deparar-se com uma curva, que só foi capaz de notar quando já estava muito próxima dela, graças ao leve contraste entre a parede da direita, que fechava-se para a esquerda, e a da esquerda, que abria-se. Virando, encontrou um novo corredor, idêntico ao primeiro, e por ele prosseguiu. A próxima curva que surgiu virava para a direita. Passando por ela, notou que o corredor seguinte declinava levemente, e passados alguns metros, desenhava uma subida bem íngreme. Teve um pouco de dificuldade para subi-lo, chegando a escorregar diversas vezes, numa delas, inclusive, esticando muito seus braços e pernas, agarrando-se nas paredes. Com muito esforço pôs-se de pé, e terminou a subida apoiando-se na parede esquerda, dando passos muito calculados e pacientes. Terminada a rampa o corredor prosseguia por mais uns poucos metros, e uma nova curva surgia. Esta conduzia a um corredor que logo adiante bifurcava-se em "V".

Decidiu-se pela bifurcação direita, sem refletir muito antes de fazer a escolha, e continuou andando.

Não sabia dizer por quanto tempo andou ao longo do corredor escolhido, mas certamente diria que foi muito. Durante todo o percurso não houve mais curvas, nem declives ou aclives. Seguiu reto toda a vida até ver um ainda distante pontinho alaranjado. O pontinho alargou-se aos poucos diante de seus olhos, e algum tempo depois dividiu-se em dois.

Conforme avançava os pontos viraram borrões, que se tornaram ondulantes e serpenteantes reflexos. E quando já estava muito próxima deles, notou que coloriam o chão e o teto do fim do corredor, que parecia alargar-se, talvez terminando em um amplo salão, ela supôs.

Chegando ao fim, primeiro descobriu que tratava-se na verdade de seu começo. Depois, que havia uma entrada para outro corredor, vários metros adiante. E finalmente, que entre as duas entradas havia um poço perfeitamente circular, cujas águas, que calculava estar a uns dez metros abaixo, estavam infestadas de piranhas, e o teto, cerca de dois metros acima, era na verdade um poço de lava borbulhante que pela própria existência desafiava uma lei fundamental da física, pois dele não caia uma gota sequer, mas em compensação mãos queimadas com garras emergiam constantemente dele, sedentas por agarrar algo ou alguém que por ali tentasse passar.

Diante daquele cenário, não pôde evitar dois pensamentos: "Isto explica os reflexos que vi lá de trás" e "Como vou passar pro outro lado?!"

CONTINUA...

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Comentários:

Ricamente descritivo! Parece um roteiro do Tarkowski.Lembrou-me, particularmente, uma cena de Stalker. E tem os deltalhes e a precisão descritiva de um E.A. Poe. Acompanharei sempre aqui, agora! Vontade ler logo a continuação!

Lucil Jr | Email | 21-06-2009 21:29:26
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Adorei a 'cara' nova do blog! E nem preciso dizer que to curiosa pela continuação da história.

Daína | 18-06-2009 13:28:09
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Um tanto quanto bizarra e onírica essa situação em que a ruivinha se encontra. E fico no aguardo dessa continuação.

Aélsio Viégas | Email | 18-06-2009 10:58:00

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