sexta-feira, 26 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 2ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

Andou muito aquele dia, até chegar à rodovia de uma das saídas da cidade onde morava. Quando se aproximava de uma rotatória gramada, com algumas flores amarelas e azuis plantadas, uma voz feminina o chamou. "Tá fugindo de casa também?" Era uma garota de uns 15 ou 16 anos. Magra, cabelos loiros com mechas castanhas e avermelhadas. Olheiras profundas, bochechas encovadas. Lábios secos. Não usava maquiagem. Algumas espinhas, mas nada que escondesse certa beleza em seus traços, mesmo que maltratados. Vestia uma jaqueta jeans curta, uma camiseta preta com a frase "FUCK YOU ALL!", calça jeans preta desbotada com alguns rasgos, tênis de cano longo rosa shocking com detalhes em preto. Carregava uma mochila bem grande nas costas. "Sim." "É, deu pra adivinhar." "É?" "Não dá pra esconder uma mochila cheia e um olhar perdido." "Como o seu?" "(...) É..." "Por que está fugindo?" "Quem começou as perguntas fui eu!" "Desculpa." "Não esquenta... Eu respondo... (...) Meu pai bate na minha mãe..." "Por quê?" "Porque é um filho da puta!" "O seu também?" "Por quê? O seu também bate na sua mãe?" "Não. Mas encontrei hoje um homem que disse que o pai dele também é filho da puta." "É, o mundo tá cheio deles..." "Por quê?" "Porque o que não falta é desgraçado nesse planeta!" "Então você fugiu de casa porque seu pai bate na sua mãe." "Também..." "Tem outro motivo?" "É, tem..." "Qual?" "(...) Ele tentou me estuprar..." "Estuprar?" "É..." "O que é isto?" "Em que mundo você vive, pirralho?!" "No mesmo que o seu." "Difícil acreditar!" "Por quê?" "Porque todo mundo sabe o que é isto!" "Eu não sei." "Sorte a sua." "Mas eu quero saber!" "Estupro é quando um monstro disfarçado de ser humano quer te forçar a trepar com ele! É isto!" "Então seu pai é um monstro?" "Sim." "E você também?" "(...) É, acho que também sou..." "Não parece." "Mas sou, não só por ser filha dele, mas por largar minha mãe nas mãos nojentas daquele animal!" "Por que a largou?" "Porque a idiota gosta dele." "Como alguém pode gostar de outra pessoa que bate nela?" "He..! Boa pergunta. Ela te responderia dizendo que só ela entende o amor que sente por ele." "E o que você sente pelo seu pai?" "Nojo! Ódio! Queria que ele morresse!" "Estranho isto." "O quê?" "Uma filha querer que o pai morra. Eu não quero que o meu pai morra, mesmo que ele faça sexo com a Sônia." "Quem é Sônia?" "A moça que trabalha na mesma empresa do meu pai." "Então ele tá traindo sua mãe?" "Traindo?" "É, tá trepando com outra mulher ao invés de trepar com a sua mãe." "O que é trepar?" "Fazer sexo! Transar!" "Não sabia que pais podiam fazer isto com as filhas." "E não podem!! É por isto que tenho nojo dele!" "E por que ele fez isto?" "Ele não fez!" "Por quê?" "Porque eu não deixei! Porque eu peguei a droga do veado de bronze da minha mãe enquanto ele tentava tirar minha calça e bati com a estátua na cabeça daquele merda!" "Ele deve ter se machucado." "É o que eu espero!" "E depois, o que você fez?" "Depois eu corri pro meu quarto, enchi minha mochila de roupas, peguei toda a grana que ele tinha na carteira, e cá estou, tentando arrumar carona antes que ele acorde e descubra que estou prestes a fugir da cidade e da vida daqueles dois." "E pra onde você vai?" "Eu... (snift!) não sei..." "Eu também não."

Uma nova explosão ocorreu no estomago de Gutinho. "Que foi isto?!" "Tô engordando..!" "Engordando?" O inchaço espalhou-se pelo corpo. "Sim. Tá acontecendo desde ontem." "Mas... Como? Que negócio é esse, afinal?!" Tudo se normalizou. Gutinho estava duas vezes mais gordo que no início de sua conversa com a garota. "Eu não sei ainda. Mas tô quase descobrindo" "Ah tá... (...) Eu nunca vi nada igual!" "É, acho que não." "Quando aconteceu pela 1ª vez?" "Ontem, quando minha mãe ficou chateada comigo." "Por que ela ficou chateada com você?" "Porque eu faço meu pai gastar muito comigo, e fiz ela ficar mais feia e magra, e porque meu pai quer nos abandonar." "Sei...Deve ser... Sei lá! Psicológico!" "Por quê?" "Você deve se sentir culpado e... seu corpo reagiu assim." "É, talvez." "Leio muito sobre isto, sabe? Psicologia. Mas eu nunca vi nada igual! Talvez não seja isto. (...) Já aconteceu outras vezes?" "Só mais duas." "Quando?" "Quando meu pai disse que não aguentava mais a gente, e que por isto ia dormir no apartamento da Sônia. E quando o homem com cheiro de bebida disse que sua mãe era puta e morreu engasgada com... o que ele disse mesmo? (...) Bom, ele disse que ela morreu e deixou ele e os irmãos dele sozinhos." "Nossa... Que merda isso." "É, ele disse que a vida dele era uma merda." "É o que parece... (...) Então você engorda toda vez que ouve os problemas dos outros?" "Não sei. Mas agora que você disse, talvez seja." "Pelo menos é o que parece pra mim." "Então deve ser." "Não que eu seja dona da verdade, mas acho que vale a pena, sei lá, testar essa hipótese." "Hipótese?" "É, essa possibilidade, essa... Ah, desisto! É difícil falar com você!" "Eu gosto de falar com você." "Você acaba de me conhecer. Como pode ter tanta certeza disto?" "Eu tô gostando." "Por enquanto. Depois de um tempo você cansa." "Por quê?" "Porque eu sou cheia de problemas." "Eu também." E deu um leve tapa na pança enquanto sorria pra garota. Ela retribuiu o sorriso. "É! Você também não fica devendo. (...) Como se chama?" "Guto. E você?" "Cristina. Mas pode me chamar de Cris." "Tá. Seu nome é bonito." "Obrigada." "Você também é." "..." Corou-se.

Após dezenas de tentativas em vão, um caminhoneiro resolveu dar carona para o estranho casal de adolescentes. "São namorados?" "Não! Só... conhecidos." "Sei. (...) Tão fugindo de casa, é?" "E se for?" "Tudo bem. Não tô aqui pra julgar ninguém. (...) Posso saber o nome de vocês, pelo menos?" "Cristina." "Guto." "O meu é Antenor." "Como pode ter certeza de que não estamos dando nomes falsos?" "Eu não tenho, mocinha. Mas pelo menos agora eu posso chamar vocês de alguma coisa." "Eu gostei dele..." Cochichou para Gutinho. "Ele é legal." Cochichou para Cris. "Eu tento ser." Falou pros dois.

Cris, depois de 30 minutos de viagem, cochilou, deixando a cabeça cair sobre o ombro de Gutinho. "Ela é bonitinha." "Sim." "Você é muito quieto, garoto." "Tô com medo de engordar mais." "Engordar?! Como assim?" "Eu engordo quando ouço os problemas das pessoas." "Como?! Você se alimenta de problemas?!" "Acho que sim. Sempre me senti mal comendo comida." "Coisa mais estranha." "Eu sei. Já me disseram isto." "E com razão! (...) Se bem que eu já vi muita coisa estranha por aí afora." "O que, por exemplo?" "Ah, teve uma vez que eu fui seguido a madrugada inteira por uma bola de luz no céu." "E o que ela fez?" "Nada, só ficou me seguindo mesmo." "Não teve medo?" "Não, era só uma bola de luz. Era até bonita." "Sei." "Também já atropelei um fantasma." "Fantasma?" "Aham. Era um homem. Apareceu do nada no meio da pista. Não deu tempo de frear. Quando dei por mim já tinha passado por cima. Daí eu parei o caminhão, todo assustado, desci, e fui olhar lá atrás pra ver se eu encontrava o corpo do sujeito. Não achei nem vestígio. Olhei em tudo quanto era canto da pista e do caminhão, mas nem uma gotinha de sangue, nem um pedacinho de osso, miolo... Enfim, nada que sobrasse de alguém pego por uma jamanta naquela velocidade. Logo, era um fantasma." "Estranho mesmo." "É um mundo estranho, como diria Elijah Snow." "Quem?" "É um personagem de um gibi que o meu filho adora." "Você gosta dele?" "Do meu filho? Claro que gosto! Por que não gostaria?" "Meu pai vai abandonar eu e a minha mãe porque gasta demais comigo, e porque a gente assombra ele." "Ele te disse isto?" "Sim." "Seu pai é um cafajeste, hein?" "Cafajeste?" "É. Não dá valor pra quem vive com ele." "Ele chamou minha mãe de morta-viva." "Um verdadeiro canalha! Não sei o que aconteceu entre ele e sua mãe, mas nenhuma mulher merece ouvir isto do marido." "Ela chorou bastante quando me contou isto." "E sobre gastar dinheiro com você, o cara tava pensando o que quando resolveu ter um filho? Que continuaria vivendo numa boa, gastando o mesmo tanto que antes? Ter um filho é aprender a se sacrificar mais um pouco por quem amamos. (...) Depois que eu perdi meu emprego no banco eu me senti totalmente atordoado. Achava que não daria conta de superar aquilo, mas superei. Juntei uma grana que eu vinha economizando, pedi ajuda pro meu sogro e pra minha mãe, e comprei esse caminhão. Não podia ficar muito tempo me lamentando porque tinha um filho pra criar e uma mulher que contava comigo." "Quando foi isto?" "Uns doze anos atrás. E desde então eu viajo, fazendo entregas em todo o país. Morrendo de saudade da minha mulher e do meu filho, mas sei que o sacrifício tá valendo a pena. O Felipe tá terminando a faculdade dele graças a isto aqui, e aos salgadinhos que a minha esposa vende lá na nossa cidade. Envelhecemos um pouco mais rápido do que o normal nestes 12 anos, mas foi uma por uma boa causa." "Você já traiu sua mulher?" "(...) Você é bem... direto, hein, filho? Não, eu nunca fiz isto. Não foi por falta de oportunidade, porque por aí afora tem muita menina oferecendo o corpo em troca de carona. Isto sem contar as perdidas que ficam parasitando nos postos de gasolina de estrada, ou nos hotéis e pensões rodoviárias. Mas eu sempre procurei me manter fiel. Tenho orgulho disto. Amo muito minha Sofia pra ir atrás de qualquer bundinha bonita que aparece na minha frente." "E quando a fome aperta..?" "Ué?! Resolveu acordar, garota?" "Com a altura que vocês tão conversando você queria o quê?" "Foi mal. Tinha me esquecido." "Sem problema. Mas você não respondeu minha pergunta, 'Seu' Antenor." "Quando a 'fome' aperta eu sei me virar sozinho." "Aham... Sei." "Pra uma garota da sua idade você é bem avançadinha." "Tive um ótimo professor." "Eu imagino." "Não tente. Pode te dar enjôos." O estomago de Gutinho começou a borbulhar. "Droga! Agora não!" "Tá passando mal, garoto?!" "Ele tá engordando!" Sua barriga inchou como um balão. "Santa Mãe..! Melhor eu encostar!" O caminhão parou. Antenor e Cris ajudaram Gutinho a descer. Assim que chegou ao chão tornou-se obeso. "Cara, eu já vi coisa muito esquisita, mas isto..." "É... um mundo estranho..." "Você aprende rápido, garoto."



(continua...)

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Comentários:

Falta muito ainda pra acabar as partes desse?! Espero que não, assim vc pode colocar algo melhor por aqui! Afinal, o espaço merece!

Tati | 27-12-2008 15:34:51
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Muito bom...

Aélsio | Email | 27-12-2008 14:01:27

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