segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

[CONTO] O Homem Absorvente - 4ª parte

(texto originalmente finalizado em 24/12/2007)

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Prosseguiram a viagem por quase uma hora em silêncio. Cris estava emburrada. Não desviava os olhos das árvores, campos e montanhas que passavam correndo pela janela. Guto vez ou outra olhava pra ela, tinha vontade de dizer algo mas não encontrava nada. "E então, já decidiram onde vão ficar?" "Não sei. Ainda não pensei nisto." "E você, mocinha?" "Qualquer lugar longe daquele traste..." Sua voz parecia resistir à tentação de espalhar-se pelo ar da cabine do caminhão. "Como?" "Nada..." "Falta uns 100 km pra chegarmos no meu próximo trabalho. Vocês têm que decidir se continuam comigo ou se seguem seu rumo." "Até onde a gente pode ir com você?" "Depois que eu fizer essa entrega eu vou passar uns dias em casa." "A gente pode ficar com você?" "Se não encontrarem um lugar melhor..." "Sua esposa não vai se importar?" "Vocês são amigos." "Como pode ter tanta certeza?" "Ainda não tentaram me assaltar, ou roubar meu caminhão." "E se a gente estiver fingindo muito bem?" "E se eu estiver entrando no jogo de vocês, só pra ver onde dá?" "(...) Tem certeza que você não é nenhuma maníaco sexual, tipo o 'tarado do caminhão', que dá carona pra menores fugitivos pra abusar deles em seu ninho de sexo e perversão?" "De onde você tira essas idéias, mocinha?" "Dos jornais. Estão cheios de notícias assim." "Hnf! Não é a toa que eu prefiro os gibis do Felipe..."

Chegaram num armazém de café. Cris e Guto observaram por duas horas os homens carregando dezenas de sacos cheios de grãos pra fora do caminhão. Antenor apertou a mão de um sujeito um pouco mais gordo que ele. "Vamos?" Subiram na cabine, e voltaram pra estrada. "Coitado... Perdeu o filho faz 3 dias." "Quem?" "O Bastos. Aquele que tava se despedindo de mim." "Como ele morreu?" "Acidente de carro." "Minha tia, irmã da minha mãe, morreu assim também." "Triste isto." "Eu adorava ela..." "Por quê?" "Porque ela era o oposto da minha mãe. Gostava de aproveitar a vida, não se importava em largar o meu tio sozinho e sair com as amigas. Não tinha medo de apanhar dele caso fizesse isto..." "(...) Seu pai batia na sua mãe, não é?" "O Guto te contou alguma coisa?" "Eu não contei nada!" "Então como ele..?" "Foi só uma suposição, mocinha. Não sabia que era verdade. Mas já desconfiava." "E do que mais você desconfia?" "Que ele tentou te molestar." "..." Os lábios de Cris tremiam. Seus olhos foram ficando cada vez mais vermelhos, pesados pelas lágrimas que se acumulavam. Por fim começou a chorar. "Ele... não tentou... (snif) Ele conseguiu..!" E daqui não deu conta de dizer mais nada.

Guto sentiu um peso enorme no estomago, mas dessa vez comprimiu-se todo. Não houve nenhuma explosão de inchaço. No lugar, houve um gesto súbito, espontâneo. Guto abraçou fortemente Cris, e falou bem baixo no seu ouvido. "Você vai ficar bem. Chore o quanto quiser, depois você vai ficar melhor." E ela chorou, muito, com o máximo de intensidade que era capaz de imprimir naquele choro. Agarrou-se em Guto, apertou-o contra o peito, fazendo com que ele sentisse aquele palpitar frenético e descompassado de seu coração. "Eu... não queria... (snif!) Ele me forçou..." "Não foi culpa sua." "Não tive forças pra lutar..." "Você terá agora!" E Guto sentiu uma grande onda de calor sair de Cris e entrar nele. Sentiu que queimava seu estomago, tornando-o cada vez mais pesado. Mas não soltava Cris, pois sabia que ainda não terminara. "Eu me sinto suja..." "Não precisa dizer nada, Cris. Só chore, e me abrace bem forte!" E ela obedeceu. E o estomago de Guto parecia uma fornalha. Suava muito, como jamais suou em toda a sua vida. Antenor observava tudo aquilo em silêncio. Entendia que era um momento só dos dois. Apesar de compartilharem o mesmo espaço, ele sabia que ambos se sentiam em seu próprio universo. Por isto mantinha-se com os olhos atentos à estrada, procurando manter o controle do que lhe cabia controlar. De repente uma voz se fez ouvir entre a barreira dos dois universos que conviviam naquela cabine de caminhão. "Pare!" "Que foi, garoto?!" "Só encoste!!" "Tá bom, tá bom!" Encostou. Gutou largou Cris, ainda com os olhos inchados, molhados e avermelhados, porém surpresos com sua mudança repentina de atitude. Desceu da cabine e correu pro meio de um monte de árvores, atrás de punhados de mato. Seu corpo explodiu em inchaços. Ficou enorme. Sua roupa rasgou-se toda, deixando-o nu. Não conseguiu manter-se de pé, tamanha a gordura que havia ganho em poucos segundos. Sentia-se insuportavelmente pesado e gordo. Levou a mão ao coração: ele batia com dificuldade, muito lentamente, mais descompassado que o de Cris, minutos atrás. Não conseguia respirar direito, tentou dizer qualquer coisa mas não saiu nada. Deu socos no chão, ainda segurando o peito de onde suas mamas enormes pendiam.

"Guto!" Cris saltou da cabine e correu na direção dele. Guto ergueu a mão que socava o chão em sinal de "PARE!" Cris parou, hesitante. Ainda chorava, mas pouco. Estava aflita. "Grita, Guto!! Grita!!" Ele levou a mão na garganta, sinalizando que estava sufocando. "Bate no peito!" Guto bateu, soltou uma voz rouca e ininteligível. Bateu de novo, uma, duas, três vezes. Só saía sílabas desconexas. "Ai meu Deus! Ele precisa gritar!" "Vai rapaz!! Você consegue!! Bate no peito com as duas mãos!!" e gesticulou imitando um gorila. Guto repetiu o gesto de Antenor, e soltou um grito ensurdecedor. Durou um minuto inteiro. Gerou uma onda de choque e calor que jogou Cris e Antenor contra o asfalto. Ambos perderam os sentidos...

Minutos depois, quando acordaram, o céu ainda estava claro. Algumas poucas nuvens ousavam passear por aquela desolação azul, solitárias e leves. Levantaram-se quase ao mesmo tempo. Diante deles encontraram árvores secas, mato morto, o exato oposto do que viram antes do grito de Guto, que agora estava esquelético, nu, ajoelhado naquele triste cenário. Olhava pro chão, assustado, ofegante. Pegou lentamente um retalho da camiseta verde que usava, e fitou-o com um olhar distante, como se buscasse enxergar outra coisa.

Cris, ainda atordoada, correu até ele, abraçou-o. "Pronto! Já passou!" "Não... Isto é só o começo..." "A gente vai dar um jeito nisto! Você vai ver!" "Que jeito, Cris? Que jeito?! Eu só me alimento disto! E só tem um jeito de me livrar do peso sem que eu exploda." "A gente vai encontrar uma solução, Guto!" "Cris, não tem solução! Eu sou assim! Já nasci assim! Não posso fazer nada contra isto. Tentei fazer e olha o que eu provoquei! E se eu fizesse isto em uma cidade?" "Guto, olha!" Pegou o rosto dele com as duas mãos e virou-o de frente pro dela. "Você me ajudou, e agora é a minha vez de te ajudar, tá? Não discute comigo! Eu vou te ajudar com isto!" "Você não precisa fazer isto por mim." "Sim, eu preciso. Eu vou!" "Faz só um dia que nos conhecemos, Cris!" "A vida é curta, Guto. Não quero mais despediçar o tempo que me resta com lamentações. Quero viver, por aquele amigo do Antenor que tá com câncer; por você, um garoto que absorve problemas dos outros; por ele, que vê as duas pessoas que mais ama tão pouco; e por cada um que sofre neste mundo!. E se eu puder fazer algo por parte dessas pessoas, algo bom como o que acabou de fazer por mim, eu vou fazer! E você também! Você pode fazer um bem tremendo pelas pessoas! E eu vou te ajudar a descobrir isto. Eu vou te ajudar a descobrir que isto que você é capaz de fazer não é ruim! É bom!" "Você acha?" "Sim." "Mesmo que outras vidas sofram pelas que salvarmos?" "A gente dá um jeito nisto." Antenor olhava-os de longe. Trazia um leve sorriso de satisfação no rosto. "Este dois vão longe mesmo!"



(continua...)

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Comentários:

Se continuar assim, vai longe mesmo...

Aélsio | Email | 30-12-2008 18:48:11

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