domingo, 23 de agosto de 2009

[CRÍTICA] Feliz Natal

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No começo deste mês, mais exatamente no dia 1º, fui na Mostra Selton Mello que estava acontecendo em Passos, Minas Gerais. Confesso que só viajei até lá com a minha irmã, virei hóspede por um dia na casa do namorado dela, e assisti Feliz Natal, só pra no final disto tudo tirar uma foto ao lado do ator, que esteve presente em todas as sessões da mostra. Sim, eu realmente não tinha nada melhor pra fazer naquele final de semana. E a prova de que cumpri a missão que me propus está logo abaixo (praqueles que não tiveram a chance de vê-la no meu Orkut).



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Mas felizmente esta minha obstinação de viver meu momento "tietagem" serviu não apenas pra satisfazer minhas necessidades egoísticas de auto-afirmação por intermédio da parasitagem da fama e prestígio alheios. Serviu também pra eu conferir o primeiro trabalho de um ator que considero um dos mais talentosos do nosso país, desta vez atrás das câmeras, como diretor.

Logo de início o que chama a atenção em Feliz Natal são as escolhas de enquadramento tomadas por Selton Mello, na seqüência inicial, pontuadas por uma trilha sonora incidental. Aos poucos somos apresentados ao protagonista, Caio (Leonardo Medeiros), no começo mostrado à distância, perdido em meio às carcaças do ferro-velho onde trabalha. Descobrimos sua rotina diária, sua vida pacata, e uma paz um tanto insegura de si num lar simples e tranqüilo que ainda assim transmite certo desconforto. Aliás, este é um dos elementos fundamentais que estabelecem o clima que permeia o filme inteiro. O incômodo gerado pela música do primeiro ato só é melhor compreendido mais adiante, quando descobrimos o quanto o passado de Caio o atormenta, impedindo-o de aproveitar plenamente aquela paz e calmaria oferecidas pela cidadezinha interiorana onde escolheu exilar-se.

No segundo ato da história, quando Caio vai para a festa de Natal de sua família, já é possível encontrar muitos indícios de que Selton Mello andou trocando muitas idéias com os diretores e toda a equipe de produção dos filmes em que atuou.

Toda a seqüência de eventos ocorridos na festa é recheada de hiper-closes enigmáticos que pacientemente vão se abrindo, deixando mais claros seu significado e contexto, os quais também funcionam como fator de reforço do incômodo que se torna a presença de Caio naquele ambiente.





Nesta parte foi fundamental o ótimo entrosamento entre os atores, todos muito competentes na interpretação dos diálogos cheios de citações vagas de um passado que poucas vezes fica claro para o espectador. São muitos olhares enviesados, reencontros em parte indesejados, e desafetos muito próximos de explicitarem-se.

Caio é o catalizador de reações por muito tempo adiadas. A última gota que faltava pra todo um manancial de frustrações, decepções e insatisfações individuais transbordarem, sendo ele o "elefante branco" daquela família a tentar mais um mergulho naquela piscina que esconde mais do que revela.

O plano-seqüência que fecha o 2º ato vem como um novo exemplo da ousadia e maturidade de Selton Mello, que o usa como recurso narrativo a fim de ilustrar com maior ênfase as oscilações de postura e humor entre os personagens uns com relação aos outros. Nela vemos o amor quase incestuoso entre Caio e sua mãe Mércia (Darlene Glória) emergir de maneira mais acentuada; o desprezo odioso e enciumado de Miguel (Lúcio Mauro), seu pai, tanto pelo filho como pela ex-esposa; e novamente Mércia, interpretada com brilhantismo exemplar por Darlene Glória tanto nesta como em todas as outras cenas em que participa, que despreza o resto de sua família, a qual, por sua vez, a considera louca.



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Passado todo o trecho-chave da festa, já temos uma noção de que a história trata o tema arquetípico da "volta do filho pródigo", apresentado em Feliz Natal numa versão deturpada e um tanto pessimista, onde a tentativa frustrada de reintegração de Caio abala toda a frágil estrutura daquela família, cuja base é tão corrompida de hipocrisia. Fato este muito bem ilustrado na cena do almoço, em que Mércia insiste em lembrar todos os presentes do verdadeiro significado da data que supostamente comemoravam, e tem suas palavras ignoradas. A "louca" acaba mostrando-se a personagem mais consciente da deterioração moral de sua família.

A 2ª metade do filme busca explorar os desdobramentos daquela festa sobre as vidas dos que foram mais afetados por ela. Acompanhamos Caio trocando a família pelos amigos de vida tão inconseqüente quanto a que ele levava antes de sua mudança. Sua cunhada, Fabiana, interpretada pela bela Graziella Moretto (que ninguém tira da minha cabeça que se parece demais com uma irmã mais velha da Paula Toller, do Kid Abelha), a cada dia mais insatisfeita com o rumo que tomou seu casamento. Seu pai, Miguel, cujo ódio por Caio é o maior mistério que procuramos desvendar da história. Sua mãe, Mércia, a cada dia mais distante da sanidade de um mundo que enxerga como injusto por ter-lhe afastado seu filho mais amado. E seu irmão, Theo (Paulo Guarnieri), invejoso do espírito indomável que um dia enxergou em Caio, e frágil a ponto de deixar que sua piedade pelo mesmo abale ainda mais seu casamento e sua relação com o pai.





Quando a nebulosidade do passado de Caio torna-se perturbadora o suficiente, surge um vislumbre do evento que foi o ponto de ruptura entre sua vida anterior e a atual, sob a forma de um flashback que não se limita a apresentar um passado objetivo, optando por uma subjetividade carregada de significados ocultos. Assim, o momento mais revelador do filme torna-se também um dos mais passíveis de interpretação.





Outro grande destaque do filme é o elenco bem equilibrado. Darlene Glória dá um show de interpretação como Mércia, cuja figura me lembrou muito o trabalho de Ellen Burstyn em Réquiem para um Sonho, embora consiga ser tão original e visceral como sua contemporânea americana. Vale também destacar o trabalho de Fabrício Reis, que interpreta um dos sobrinhos de Caio, muito a vontade e cativante em sua tarefa de convencer-nos de que se trata realmente de uma criança, ao contrário das muitas que desfilam pelo cinema e a TV como se fossem andróides se passando por humanos. E, claro, Leonardo Medeiros, usando uma atuação contida e comovente que consegue passar todo o peso de culpa e frustração carregado pelo personagem.

Feliz Natal é uma estréia que surpreende pela segurança e ousadia demonstradas por Selton Mello na direção. Por uma história que foge do convencional e de soluções fáceis, evitando a tarefa de agradar um público maior. Funciona mais como uma provocação. É a conquista de um paraíso feito das carcaças de uma vida cheia de acidentes de percurso. É a busca de um homem por redenção, condenando-se à pena de lidar dia após dia com reflexos distorcidos e retorcidos daquele que considera seu maior pecado: o peso da vida que tirou graças a mais uma de suas inconseqüências, talvez maior que o peso sentido pelo desperdício de uma vida que ele acredita não merecer.

Trazendo um final que é tanto poético como trágico, Feliz Natal encerra-se como uma obra cujo principal objetivo é levar o espectador à reflexão. Como o próprio Selton Mello definiu sua primeira experiência como diretor, Feliz Natal é um filme pra ser degustado, que nos consome um tempo maior para captarmos toda nuance de sabores que ele oferece, por mais amarga que seja a mistura de todos eles no final.

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