sexta-feira, 3 de julho de 2009

[CONTO] Sara

Recorte de "Tears in my eyes" de Etoile06

Era uma vez uma garota, seu nome era Sara...

"- Eu não suporto mais viver com você!! Eu sou assim! Será que nunca vai entender isto?! Eu SOU assim! Não tem nada de errado comigo! Eu não SINTO que exista algo de errado comigo! Dá pra entender?!"

E a briga durou a noite inteira, terminando com uma batida seca de porta, um barulho que parecia rachar algo dentro de sua alma. Mais tarde, tudo que ela pôde fazer foi:

1) Fechar os olhos bem devagar;
2) Suspirar profundamente;
3) Deitar encolhida sobre a cama;
4) Esforçar-se pra não cair no velho clichê de cair em prantos depois de mais uma briga com a mãe.

Conseguiu livrar-se do 4º item, ao menos por um tempo, mas não pôde evitar uma cena que invadiu sua mente sem pedir licença.

"Olá, Sara com 4 anos..."

Brincava toda feliz com suas bonecas. Mal terminara de aprender a dizer suas primeiras palavras e já dava indícios de que seria uma ótima mãe. Um ano mais tarde as bonecas ficariam obsoletas. Seu irmão nasceria, e seria seu primeiro "filho de verdade". Mas ela não sabia disto naquela ocasião, de modos que as bonecas foram as primeiras a receber aqueles lampejos de um sentimento até então indefinido, ainda sem saber muito bem o que fazer com aquele quentinho gostoso que brotava de seu peito.


"Ela era tão..."

Era uma garota linda. Doze anos de toda a exuberância que aquela idade lhe permitia. Sara não sabia bem como explicar o que estava sentindo por ela. Sua pele estava arrepiada, seu coração acelerado, parecia ter o dobro de seu próprio tamanho, mas sentia-se pelo menos dez vezes mais leve, como se seu corpo inteiro se espalhasse no ar, pegando carona com aquela brisa gostosa que levava até suas narinas aquele perfume. Talvez, se alguém lhe perguntasse naquele momento o que sentia, Sara diria que era vontade de ter aquela beleza toda só pra ela, e encontrar uma forma de fazê-la sentir o quanto era bela, e o quanto havia mexido consigo.


"- Nunca mais se atreva a dizer isto sobre ele!!"

Sua bochecha ainda formigava. Sabia que segundos depois começaria a queimar, a pele a ficar vermelha, inchada. Mas a voz de sua mãe falava mais alto que qualquer coisa que seu corpo tentasse lhe dizer. Era como se pegasse uma parte dela e jogasse contra a parede. Algo de que ela gostava muito. Algo que precisava de certo cuidado na hora de manusear. E ela via aquele algo aos poucos se desfazendo em pedaços, mas ainda conseguia manter-se esperançosa, imaginando que mais tarde aquilo tudo não significaria quase nada.


"Com o tempo eu aprendi que o mais tarde seria sempre adiado..."

Perdeu a conta de quantos copos havia tomado. Foi praticamente um milagre ter conseguido chegar em casa sem abraçar a idéia de permanecer deitada na calçada depois do terceiro tombo que tomou. Sentia a mente anestesiada, insensível a tudo. O corte no joelho, o gosto de cigarro e sexo na boca, aquele cheiro de suor alheio e um ou dois perfumes que definitivamente não eram o dela. No dia seguinte acordaria com mais uma daquelas dores de cabeça que chegava a dar náuseas, uma sensação horrível no peito, uma vontade de chorar um choro que não vinha e afogava, e a certeza de que ainda não conseguira encontrar a estratégia perfeita pra enganar-se totalmente.


"Eu a amo tanto que não saberia nem por onde começar a demonstrar isto..."

... e a olhava com aquele ar de orgulho materno. Mesmo não sendo sua mãe, era como se fosse. Sabia que era apenas sua irmã caçula, mas há muito tempo havia abandonado conceitos que pra ela não significavam quase nada. Amor, no fundo, partia de um só princípio, mesmo que assumisse formas de demonstração tão distintas, a ponto de muitas vezes aproximá-lo perigosamente do ódio. Mas não era o caso. Só desejava nutrir os sonhos doces daquela menina, alimentar aquele sorriso lindo, e vê-la crescer como o ser mais feliz da face da Terra. E só.


"- Sabe, Sara, eu olho pra esses seus olhos cinzentos, que nuns dias parecem de um verde desbotado, e em outros de um azul um tanto incerto, e tudo que vejo por trás deles é um grande enigma. E é por isto que você me fascina tanto."

O rapaz terminou de dizer-lhe as duas frases que ecoariam por sua mente em muitas ocasiões futuras com um sorriso tão enigmático quanto o brilho sereno de seus olhos. Pensaria muito naquelas duas frases, mais do que nele, como se elas guardassem uma verdade que não pertencia a ninguém mais além dela.


"- Ela sempre foi muito dada, sabe? Era algo bonitinho de se ver quando era pequena. Todos achavam uma gracinha aquela meiguice toda, mas depois de um tempo é o tipo de coisa que vai desaparecendo. Acontece com a maioria delas. Mas não com ela! Nãaao! Ela TINHA que ser diferente de todas as outras! E agora ela veio com aquela história absurda de que... (...) O quê?! Como assim é culpa minha?! Vai começar de novo com esse papo de que ela não devia ter ficado comigo desde que nos separamos? (...) Olha aqui, se tem alguém que é culpado nessa história toda é ela! A gente devia ter dado um basta naquilo antes que chegasse a esse ponto!"

Sua vontade era a de tomar o telefone de sua mão e jogar no meio da rua, torcendo para que passasse um caminhão bem na hora, acertando-o em cheio com a roda. Mas tudo que fez foi ouvir a primeira das muitas conversas que seus pais teriam depois da primeira vez que trouxe aquele assunto à tona. Aquela mancha vermelha e sanguínea que turvava pedaços de sua inocência.


"- Shhh! Fica quietinha, tá? Vai terminar logo..."

Suas mãos pequenas, do tamanho de bisnaguinhas Seven Boys, suavam. Uma dor aguda subia lá de baixo, e parecia espalhar-se por ela toda. Sentia um embrulho no estômago, uma vontade de vomitar. Uma saudade imensa de suas bonecas... e dos movimentos líquidos de seu irmãozinho que nem aprendera a chorar dentro daquela barrigona. Imaginava-o chorando por ela, mesmo sem saber ainda como seria seu rosto...


"Você é feia. Sabia? Muito feia. Eu odeio o seu corpo. Não consigo enxergar a beleza que vêem em você. Esses seios enormes, essa barriga... Você não merece nada do que te oferecem. Você..."

Viu a mão delicada surgindo atrás dela, pousando sobre seu ombro nu. Após a mão apareceu o rosto. Sua diva. Sua vida. "Ela é tão linda..." Enlaçou-lhe a barriga com os braços. Aquele toque era seu conforto. Aquele olhar de desejo, vindo dela, por alguns instantes fez com que se esquecesse do que vinha pensando há pouco. "Eu não mereço toda essa beleza... Mas, meu Deus, que isto dure mais esta noite, só esta..." E as duas, nudez com nudez, abraçaram-se, beijaram-se, e amaram-se durante mais aquela madrugada inteira.


"- Ela é louca por ter feito isto! Só pode! PRA QUE tentar acabar com tudo assim? Será que... Será que ela nunca notou o quanto os amigos gostam dela?!"

O suicídio não era novidade para Sara. Já havia se matado de muitas formas. Numa das primeiras cortou os pulsos. Lembrava-se nitidamente de sentir-se leve como um pássaro em pleno vôo enquanto o sangue corria pra fora de seu corpo, e da maneira como a mancha deixada na lâmina do gilete misturou-se com o pouco que escorrera dela quando caiu no chão do banheiro, formando um coração. "Bastante apropriado pra ocasião", pensou ela, "Tão dramática!", acrescentou, imaginando que seria isto o que Hiei diria diante daquela cena, ou talvez Vegeta, ou ambos.

"Aquele frasco inteiro de anti-depressivos com vodka quase deu certo..."

Outra vaga lembrança era a overdose de cocaína que a matou pela quarta ou quinta vez.

Era uma garota de muitas mortes, mesmo que nenhuma houvesse atingido o completo êxito.


"- Tem horas que, lembrando de todas as vezes que você tentou acabar com tudo, Sara, eu me pergunto se na verdade você só quisesse arrumar um jeito de matar apenas uma parte de você que não te agradava."

"Talvez seja isto", respondeu ela na ocasião, "ou talvez eu só não agüente mais viver menos do que eu sou capaz, e ser menos pras pessoas do que eu posso ser", esta última parte ficou só no pensamento.


"- Você precisa acreditar em mim!! Foi isto que aconteceu! Isto tudo tá voltando sem que eu tenha controle! Eu preciso que você acredite em mim!!"

Mas ela não acreditava. Não queria acreditar. Talvez fosse demais pra ela. Talvez ela só quisesse iludir-se um pouco mais, fingindo que sua consciência não a atormentava tanto quanto aquelas lembranças horríveis que assombravam sua filha.

"Eu não posso acreditar em você", parecia ouvir sua mãe lhe dizendo por trás daquele olhar que vestia-se de desprezo por fora, mas que por dentro parecia carregar mais medo do que qualquer outro sentimento simulado. Mas que medo seria aquele?


"- Sara, sabia que você é minha melhor amiga? Você é como uma irmã pra mim. Nem minhas irmãs são tão carinhosas como você é comigo. E eu não consigo enxergar a menor malícia nisto. É só... Não sei... amor puro e inocente!"

Esta era a resposta para o enigma. Aquele que o rapaz de sorriso tímido enxergara nela. Sara nasceu carregando aquilo em seu peito. Aquela coisa que não conseguia definir, mas que parecia implorar pra sair dela. E aos poucos saiu. Inicialmente sob a forma de brincadeiras. Depois veio aquela atração pela beleza de uma garota, sua colega de escola. Mas logo descobriu que não sentia atração apenas por garotas. Garotos também eram o alvo de seus desejos. Tentou se envolver com muitos deles. Achou a maioria brutos demais, sujos, insensíveis. Teve ótimas experiências com alguns poucos. A maioria eram tímidos, sensíveis demais pra serem confundidos com gays, e alguns eram, mas que apesar disto embarcavam na viagem, tamanha era a atração que ela conseguia exercer sobre eles.

"Essa coisa... eu não consigo controlar..."

Mas é assim mesmo, Sara. Pessoas dotadas dessa capacidade de amar sem preconceitos não conseguem controlar essa vontade enorme de espalhar esse amor. É algo que gera desespero muitas vezes.

"Eu não sei fazer com que ela acredite em mim..."

Sei que você sente que ela precisa acreditar, porque é uma parte de você que você sente a necessidade de partilhar com alguém, por mais doloroso e incômodo que seja. Mas você tem seus amigos, e muitos deles te amam tanto como amariam uma irmã que sempre ofereceu a eles a maior atenção e amor que poderia oferecer a alguém. Eles são sua família até mais do que sua própria família sanguínea é pra você.

"Eu nunca me senti bonita... Meu rosto é estranho. Não parece ser nem de homem e nem mulher... É como se até hoje eu não houvesse decidido..."

Mas você É bonita! E nada mais apropriado pra você do que essa beleza andrógina! Até aqui você foi capaz de amar tanto homens como mulheres, e se ofereceu pra eles de corpo e alma. Muitos viram isto como promiscuidade, mas no fundo você sabe que é outra coisa, não?

"Desespero..."

Também. Mas acho que está mais pra um impulso incontrolável de fazer com que aqueles que fazem com que se sinta bem, sintam-se tão bem quanto. Um desejo sem pudores. Uma vontade louca de espalhar esse desejo todo de sentir-se amada amando tanto quanto lhe for possível.

"E mesmo assim eu passei a me destruir..."

Porque ainda há poucos neste mundo capazes de compreender alguém como você. Existem poucos neste mundo prontos pra aceitar um ser tão cheio de um sentimento tão poderoso incapaz de direcioná-lo pra uma só pessoa, para apenas um sexo, seja o seu oposto ou seu igual. Talvez por isto você se sinta mais atraída por mulheres. Elas parecem compreender mais essa necessidade de troca, são mais carinhosas, mais sensíveis a sentimentos muitas vezes vagos, sutis.

"Às vezes eu só queria morrer..."

Não. Você nunca quis isto. Não de verdade. Sua fome de viver é maior do que qualquer desejo de morte. Você só queria acabar com aquelas partes de você que insistem em voltar pra te atormentar em sonhos e flashs de memória que lhe ocorrem sem aviso. Mas você sabe que não é se matando que vai acabar com isto, pelo menos não de uma forma satisfatória. Você sabe que não é se dopando, se enchendo de álcool e drogas a fim de destruir alguns neurônios, que você vai eliminar parte de seu passado.

"Eu me sinto suja por..."

Não se sinta! O que aconteceu com você naqueles dias sombrios de seu passado é motivo para que outras pessoas sintam-se sujas. Você não se ofereceu pra elas, não da forma como elas imaginavam. Como eu disse, este mundo não está totalmente pronto pra tanto amor.

Este mundo não está preparado para você, Sara. Mas algumas pessoas sim. E sinto-me muitíssimo grato por dizer que, apesar de um início tão conturbado para nós, cuja relação chegou ao ponto de considerá-la uma espécie de inimiga, agora posso chamá-la não apenas de amiga, mas de irmã, e dizer, sem hesitar, que eu te amo, Sara. Amo esse amor enorme que você carrega em si. E amo seu grande esforço até aqui de espalhá-lo a quem quer que esteja disposto a recebê-lo, sob quaisquer formas.

E esta noite, você dormirá em paz.

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Dedico este conto a uma amiga que é tão fascinante e tão apaixonante como Sara. Esta amiga, eu gostaria de abraçá-la agora, e dizer que a vejo como um exemplo do quanto a gente pode ir além se lutarmos contra o que nos impede de ser mais nós mesmos, e menos daquilo que esperam de nós.

Que ela continue sendo tanto quanto sempre foi, e que eu um dia consiga seguir seu exemplo.

Te amo, minha irmã, minha Sara.

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Comentários:

não tenho palavras pra descrever meus sentimentos ao ler o texto. Vou apenas ressaltar q não fica devendo nada pra ninguém, além de dar um estímulo pra uma mente preguiçosa... Continue assim

Lucão | Email | 03-07-2009 21:39:35

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