sexta-feira, 24 de julho de 2009

[CONTO] UM DISTINTO SENHOR DE GUARDA-CHUVA


Uma das lembranças de minha infância que guardo com maior carinho é a daquele senhor. A época era outra. Televisão e internet não ocupavam tanto o tempo das pessoas. Principalmente em cidades do interior como era aquela, o mais comum eram pessoas sentadas pra fora de casa, apreciando o movimento ou apenas trocando meia dúzia de palavras com amigos e vizinhos.

Foi justamente numa dessas situações que eu o vi pela primeira vez. Essa lembrança ficou marcada em minha memória. Até hoje posso dar os detalhes.

Estávamos minha avó e eu, sentados no alpendre de casa. Era um dia agradável, ensolarado, mas de temperatura amena. Como estava de férias da escola, aproveitava para passar calmas e agradáveis tardes com ela. Enquanto ela olhava as rosas recém desabrochadas do jardim, eu brincava com um carrinho de plástico vermelho. Uma das rodinhas tinha soltado e eu estava tentando colocá-la no lugar. Foi entre um “vrum” e outro que o vi passar pela primeira vez. Caminhando bem lentamente pelo passeio, veio aquele homem. Não aparentava mais do que trinta e cinco anos. Usava um chapéu côco preto, combinando com um paletó também preto, riscado. Usava barba, mas impecavelmente aparada. Porém, o fato que mais me chamou a atenção, foi o guarda-chuva que carregava sob o braço. Era um guarda-chuva grande, de cabo curvado e ponta de aço.

O fato do guarda-chuva ter me chamado tanto a atenção, foi justamente o tempo que estava fazendo naquele momento. O céu se encontrava limpo, sem nuvem alguma. Qual seria a razão de ser daquele guarda-chuva? Já havia visto senhoras usarem sombrinhas para se protegerem do sol, mas aquele não era definitivamente o caso.

Passou por nós, retirou o chapéu, ofertou um “boa tarde”, voltou a colocar o chapéu e seguiu seu caminho. Imagino que minha avó também não o conhecesse, mas como mandava a educação, retribuiu o cumprimento.

Apesar da minha consternação por causa do guarda-chuva, aquela não teria passado de uma mera lembrança de infância, se não tivesse se repetido por várias vezes. Durante o período que passei na casa de minha avó, todas as tardes aquele senhor passava. Todas as vezes retirava o chapéu e nos cumprimentava. E todas as vezes carregava o mesmo guarda-chuva, estivesse fazendo o tempo que estivesse. Notadamente, naquele período tivemos apenas uns dois dias de céu nublado e um com chuva.

É curioso, mas ao refletir aqui, não me lembro dele ter passado no dia que choveu.

Foi interessante, mas aquela figura me impressionou de uma forma que não sei explicar. Talvez fosse a sua educação, a dignidade na sua figura, o mistério gerado pelo sempre presente guarda-chuva... não sei ao certo, mas o fato é que aquela figura me marcou. Marcou tanto que eu me lembro de minha mãe contar que deu trabalho para tirar um certo hábito que adquiri de querer levar um guarda-chuva pra todo lado.

Recentemente, estava eu voltando do serviço no fim do dia. Enquanto chegava no meu carro estacionado do outro lado da rua, procurava as chaves no bolso. Não pude deixar de notar que passaram por mim, dois enfermeiros, levando um senhor numa cadeira de rodas. Era um senhor bem idoso, com as rugas do tempo bem marcadas no rosto. Possuía um olhar vazio, com se pudesse olhar através de tudo e todos.

Esta seria mais uma cena corriqueira, já que sempre estaciono o carro perto daquele hospital. Mas alguma coisa, um fagulha me atiçava a mente. Aquela figura não era estranha. Dei outra olhada com calma. Era ele! Não tinha mais o chapéu côco. Não tinha mais a barba impecavelmente aparada. Mas tinha um guarda chuva. Não era o mesmo, esse que carregava agora era pequeno, daqueles que se compra em lojas de 1,99. Mas estava lá. Aquele senhor, aquela lembrança que tanto me marcara na infância, estava lá.

Não tive muito tempo pra abordá-lo. Logo foi colocado num carro pelos enfermeiros e partiu. Abordei um deles. Não resisti, tinha de saber mais sobre aquele senhor. Descobri que se chamava Pedro, e era portador de uma doença mental desde jovem. Um dos distúrbios que sofria devido à doença, era uma medo irracional de chuva, raios e trovões. Somente a presença do guarda chuva o acalmava.

Aquilo caiu como uma bomba. Um muro que desmorona. Um herói que cai. Interessante ver como a vida é. De vez em quando ela prega essas peças. E só nos resta conviver com isso. Ainda que respeitando seu estado, e sentido até compaixão pela situação, prefiro guardar a lembrança do senhor educado, da figura que inspirava dignidade e admiração. No fundo, apenas um distinto senhor de guarda-chuva.

4 comentários:

  1. É, esse lance de revisitar alguns elementos e personagens de nossa infância vira e mexe rende esses momentos de desilusão.

    Uma rua onde tudo parecia maior, mais brilhante, mais mágico. Uma série de TV que parecia muito legal e bem feita. Um desenho animado que parecia ter a melhor história já concebida. Tudo isto, depois de alguns anos, corre o risco de desencantar-se diante de nossos olhos com gostos que foram se apurando, enxergando o ridículo por trás de muita coisa que nos soava "fera demais" (até uns anos atrás eu ainda usava essa expressão pra qualificar uma coisa de que gostava muito, olha só).

    Ótimo conto. Mas, que ele não seja um desestímulo, mas apenas algo pertinente a ser dito sobre o tema. Ainda há muito neste mundo pra nos intrigar, nos encantar, nos deixar com os olhos brilhando com a magia do momento. Infância é aquele estágio que depende mais da mente do que do corpo, assim como a criatividade. Que mantenhamos esse fascínio pela redescoberta que o mundo pode nos proporcionar se estivermos abertos a ela.

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  2. Este comentário foi removido pelo autor.

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  3. Todos temos essas lembranças mágicas da infância, do passado. Mas memória é criação, é uma construção simbólica feita por nós, em relação à objetos que, como fenômenos, não possuem tais significados.
    Por isso mais tarde, no futuro, quando descobrimos o significado das coisas em sí, e não o significado atribuído por nós a elas, isso gera decepção, descontentamento,desencanto.

    Gostei do conto. Abraço.

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