quarta-feira, 9 de setembro de 2009

[CONTO] Os ursos do Lago da Lagrima do Norte


Sente-se meu jovem” – disse o velho sem tirar os olhos da fogueira que crepitava na clareira, enquanto dava mais uma tragada em seu cachimbo – “Está na hora de termos aquela conversa que há tanto almejava, minha criança.

Dentre as árvores saiu timidamente uma criança coberta por algumas peles e tiras de couro. O peito nu demonstrava que ainda era, efetivamente, apenas uma criança. Passou por cima do tronco de árvore onde o velho fumava. Hesitou por um instante se deveria sentar-se no mesmo tronco, e então decidiu ficar num tronco adjacente diante da fogueira.

Nossa nossa, como o tempo passou rápido desde que você era apenas um pequeno bjornezinho” – A fogueira crepitou alto, então o velho prosseguiu – “Sabe, Athos, está na hora de você finalmente entender a história de nossa tribo, e porque nós não somos como nenhuma tribo de humanos, ursos ou criaturas da floresta. Você já está na idade de compreender e assumir o que significa ser uma Presa de Prata do Lago do Norte.

A criança se adiantou na ponta do tronco caído, ansiosa como quem vê os créditos iniciais de um filme que há muito desejara ver ou, neste caso, uma história que sempre quis escutar. O velho parecia sentir a importância daquele momento, de contar aquela história em seus ossos. Pigarreou, e então começou a falar...

==============================================

Como bem sabemos, há muito, muito tempo atrás, antes mesmo da primeira relva crescer sobre o primeiro pedaço de terra, a Deusa das Florestas (que possui tantos nomes quanto há de estrelas no céu, mas que por nós é conhecida como Ehlonna) teve duas filhas: as luas Ulek e Kronna. Estes nomes já estão esquecidos para os humanos, ou nem sequer foram conhecidos, naturalmente.

A Floresta do Tempo, a floresta onde estamos agora, foi a primeira floresta de todo o mundo, e diz-se que suas árvores eternas foram plantadas pelas mãos da própria deusa, e que, assim sendo, existiam desde o início dos tempos, e permaneceriam até o seu fim, quando todas as estrelas caírem do céu, e mais nenhum animal caçar sobre a face deste mundo.

Mas, voltando à deusa, esta magnífica floresta foi sua primeira e mundana criação (após suas filhas, naturalmente) e, assim sendo, muito amor e atenção a deusa dedicava a este lugar. Quando o mundo ainda era jovem e sombrio, e os espíritos confusos e raivosos das coisas que ainda viriam a nascer vagavam perdidos, a própria deusa cruzava esta floresta com a velocidade e graça de uma corsa, e caçava estes espíritos perdidos para que mal algum fizessem a este lugar. Suas caçadas eram iluminadas pelo luar de suas filhas gêmeas, e aqueles foram tempos de paz e felicidade, como bem cabe às coisas da juventude.

Entretanto, com o decorrer das eras, Ulek e Kronna cresceram em ciúme à Floresta do Tempo, e pensamentos venenosos lentamente tomaram conta de seus corações. Veja, não é como se isso tivesse acontecido de um dia para o outro, ou mesmo de um ano para o outro. Foi um processo lento, que durou eras onde o amor das luas por sua mãe se corrompeu em ciúme e pensamentos vis contra a Floresta, e tudo mais que Ehlonna amasse e pro qual dedicasse sua atenção que não pra elas.

Por tempos, então, um plano cruel fomentou nos corações das irmãs, até que ele fosse colocado em prática com vilania: as luas Ulek e Kronna enganaram Quetzalcoatl, o Espírito do Ar, para que se apaixonasse pela floresta e ele assim o fez. Através das artimanhas e feitiçarias de Kronna e Ulke, Quetzalcoatl se apaixonou perdidamente pela floresta, e a floresta por ele se apaixonou de volta.

Ora, acontece que as coisas do ar e as coisas da terra não são para ficar juntas, de modo que aquele era um amor impossível e que nada traria alám de dor. Com efeito, em pouco tempo (pouco tempo para as coisas da natureza, o que para os humanos seriam dezenas de centenas de gerações) a floresta começou a definhar em sua dor e isso deixou Ehlonna muito triste.

A deusa, como caçadora nata que era, caçou pelos quatro cantos do jovem mundo um espírito que pudesse lhe dizer como resolver aquele problema e curar o coração da sua amada floresta, mas o que os espíritos das coisas que ainda viriam a nascer puderam lhe dizer não foi nada que ela mesma já não soubesse: não havia como curar o coração da Floresta, e a morte seria o único alívio disponível para que ela não sofresse até o fim dos tempos.

Então assim a deusa o fez. Por misericórdia e amor, cravou sua flecha de prata no coração da floresta e ela assim pereceu. Ehlonna chorou então por mil dias e mil noites, e suas lágrimas formaram o Lago Salgado do Norte, sobre o lugar onde ela abateu o coração da Floresta.

Eventualmente uma nova floresta nasceu ao redor do lago, mas não era a mesma coisa. Espero que você realmente nunca precise entender isso, mas o advento de um novo filho jamais apagará a dor da perda do primeiro. São coisas diferentes, e desta ferida o coração da deusa jamais cicatrizou.

De modo que o plano das luas funcionou perfeitamente, e a deusa jamais tornou a passar tanto tempo nestas terras. Com efeito, ela só tornou a voltar a esta floresta uma única vez, e esta vez foi para nomear os ursos da floresta do norte como guardiões da flecha de prata de Ehlonna, cravada no coração da antiga Floresta do Tempo (que fica no fundo do Lago Salgado do Norte).

Por incontáveis gerações, desde então, os poderosos ursos do Lago Salgado do Norte, que ficaram conhecidos como Presas de Prata do Lago Salgado do Norte, protegeram com bravura e lealdade os artefatos sagrados da deusa. E por incontáveis gerações aquilo foi bom, e os ursos Presa de Prata cresceram em poder e orgulho.

Até que então, duzentos anos atrás, veio a guerra, e os humanos cresceram sedentos de poder e ambição. Ora, a guerra dos humanos não dizia respeito nenhum aos ursos desde que ela não chegasse à floresta, e mesmo que chegasse, os ursos eram poderosos e espertos para protegê-la sem serem enganados. Você não consegue enganar um urso, esse é um velho e verdadeiro ditado do norte, de modo que os ursos originalmente pouca atenção deram a guerra.

Mas a guerra...
Bem, a guerra nunca muda...

Desde o nascimento da humanidade, quando os ancestrais deles descobriram o poder assassino do osso e da pedra, sangue tem sido derramado em nome de tudo, dos deuses, passando pela Justiça à simples e psicótica fúria. A guerra nunca muda.

Apesar de suas vidas curtas e efêmeras, os humanos sabem no fim das contas uma coisa ou duas sobre as verdades do mundo, e os magos mais sábios e poderosos do reino em guerra faziam alguma idéia sobre a história do Lago Salgado do Norte, e o tesouro que ele abrigava.
E sendo sábios que eram, sabiam que os ursos não podiam ser derrotados ou enganados. Os ursos não seriam derrotados dentro da sua floresta, e não podiam ser corrompidos ou enganados... ao menos enquanto fossem ursos.

O plano do mago não consistia em enfrentar os ursos, e sim em seduzi-los. Como foi dito, não se pode enganar um urso, mas pode-se perfeitamente enganar um urso que quer ser homem. E assim foi feito: o rei dos ursos foi enganado e seduzido a se apaixonar por uma humana, tal qual a Floresta foi enganada a se apaixonar pelo espírito do ar. Isso não foi, de forma alguma, mera coincidência, naturalmente. Foi, de fato, fruto de anos de muito estudo, pesquisa e arcanismo por parte do mago para descobrir no leito da história o que havia se passado naquela floresta, e fazer a história repetir a si mesma.

Foi, efetivamente, um plano brilhante.

Ora, é bem sabido que ursos e humanos não podem compartilhar tais sentimentos e, assim sendo, enlouquecido de dor e paixão, o rei dos ursos procurou o mago (como o mago esperava que acontecesse, pois este era o seu plano) suplicando por um acordo. E um urso que quer ser humano é uma criatura perfeitamente enganável, naturalmente.

Em troca da “humanidade”, o urso lhe entregou a Flecha de Prata de Ehlonna, e o coração da antiga floresta. Desnecessário dizer, é claro, o poder contido naqueles itens, e a diferença que eles fizeram no curso da guerra dos humanos, de modo que o mago muito satisfeito se deu com essa barganha.

O urso, por sua vez, fora enganado, e nada recebeu do mago. O que não quer dizer que ele não recebeu nada, embora teria sido melhor que não tivesse, e essa é a parte que mais concerne ánossa tribo.

A deusa se viu pessoalmente ofendida, vilipendiada, e indignada com a traição dos ursos, a quem ela confiou a proteção dos seus mais amados bens. Ora, eventualmente as criaturas do mundo conseguem surpreender mesmo os deuses, e aquela traição fora uma surpresa para a deusa, que estava tão surpresa quanto furiosa.

Como punição pela traição, Ehlonna concedeu à tribo dos ursos exatamente o que o seu rei almejara, e essa foi a maior maldição que podia ser imaginada. Desde esse dia nossa tribo tem ficado presa entre dois mundos, e daí nasce todo esse vazio, melancolia e sensação de deslocamento que preenche o seu coração e o meu.

Nascemos com o corpo de humanos, crescemos e envelhecemos como humanos, possuímos suas habilidades e suas características, mas jamais seremos humanos de verdade. Não nos sentimos à vontade em suas cidades, vestir suas roupas, usar suas armas e armaduras de ferro e aço são como vestir um colete de pulgas para nós, e suas casas e palácios fechados de vários andares nos causam enjôos.

Mas jamais seremos ursos novamente, nem voltaremos a ser parte da natureza, a sentir o mundo, o vento, a terra e a água como os animais sentem, embora nosso coração clame por isso. Somos aberrações amaldiçoadas sem lugar neste mundo, e sem lugar no mundo dos homens, e esse vazio, esse tormento, essa inconstância e sensação de nunca estar no lugar certo, preenchem cada um de nossa tribo, desde o nascimento até o dia de deixar este mundo.

Acredita-se que se recuperarmos os artefatos divinos através dos quais nossa tribo traiu a deusa essa maldição seja levantada e possamos voltar a ser apenas meros ursos, ou ao menos humanos completos. Mas a guerra fez com que esses itens se perdessem nas fronteiras deste mundo, e sua localização é desconhecida.

Tal tragédia aconteceu há mais de duzentos anos, e desde então temos nascido homens, mas com coração de urso. Eu nasci assim, você nasceu assim, seus filhos nascerão assim até que a busca seja completada.

Por isso cada homem de nossa tribo, ao fim de sua vida, deve partir para uma jornada sem volta em direção ao mais longe que ele conseguir avançar em busca dos itens divinos. Caso ele fracasse em sua busca, como todos até agora fracassaram, seu destino é morrer sozinho e esquecido em terras estrangeiras, como estrangeiros sem pátria que todos somos neste mundo.

Eu lhe conto essa história, meu neto, porque amanhã partirei para minha peregrinação, e provavelmente não nos veremos novamente. Caso nunca mais ouça falar de mim, como deve acontecer, lembre-se dessa história e conte-a daqui a 50 anos ao seu neto, como eu contei a você, para no dia seguinte partir em sua própria peregrinação e busca.

Que Ehlonna possa um dia lhe perdoar e abençoar pelo crime que nós cometemos.
Adeus, meu neto.

===============================================

Cinqüenta invernos se passaram desde aquela noite, e Iorek Svensson nunca mais ouviu falar do avô.

E naquela noite de inverno, ele observava a fogueira crepitar com o cachimbo no canto da boca. Era uma noite muito importante e especial para ele: havia chamado o seu neto para lhe contar a história da sua tribo.

Nenhum comentário:

Postar um comentário