quinta-feira, 22 de outubro de 2009

[CONTO] Lá adiante, onde não há

(originalmente publicado em 24/12/2004, reeditado nesta versão)

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"Lá adiante, onde não há" por Aélsio Viégas
(clique sobre ela para uma versão maior)

Cavalgo sobre o rio de fogo em meu cavalo de ouro com olhos de diamante, sentindo a chuva cortante e sua dor resultante de lâminas venenosas. O céu coberto de nuvens, espessas, avermelhadas, a atmosfera carregada, e seus raios que ecoam por todo o vale escuro, adiante.

Ali está o fim de minha jornada. Ali o solo ferve, o ar crepita, ossos viram pasta. Dali nem dragões ousam se aproximar.

Aquele é o ponto onde o tudo torna-ne o nada, onde as patas do meu cavalo de ouro derreter-se-ão, e eu perderei o único companheiro que me resta dessa exaustiva e laboriosa cavalgada rumo ao vazio de minha alma atormentada. É o ponto focal da destruição profetizada. É o final dessa viagem sem volta, feita por um homem que escolheu morrer sozinho, sendo consumido por si, deixando o mundo pra trás, pois aqui ele encontra-se com seu próprio limite.

Aqui não há mais realidade, há apenas um homem e seu cavalo de ouro. Há a escuridão que não dá espaço ao brilho do passado, nem à luz, não mais refletida por seus olhos diamantinos em meus olhos vazios, em meus cabelos sem trato, em minha pele sem cor, em minha alma, que não é mais sol, mas uma pedra escura vagando pelo vácuo espacial.

Escolho descer de meu bom companheiro dourado pouco antes de transpôr os limites derradeiros. Ele não merece sacrificar-se por mim. Peço a ele que volte ao mundo que ficou lá atrás, que volte àquele mundo ainda disposto a oferecer-lhe o brilho único que possui, o qual tornei-me incapaz de refletir diante dos que lá vivem, e que tanto valorizam essa luz que uns poucos emitem por suas próprias naturezas.

Pura ostentação! É isso que eu digo nessa altura de minha vida! Pura ostentação!!

Triste, porém com uma ponta de alívio, e até mesmo um pouco de satisfação, vejo meu companheiro, hesitante, partir em sua caminhada de volta ao mundo que deixei. Olho para o céu acima e vejo que daqui nem sequer aquelas nuvens avermelhadas de há pouco, tão ameaçadoras, sequer ousam se aproximar. No fim, são raros aqueles corajosos o bastante pra enfrentarem o próprio fim. O mesmo parece valer para as nuvens...

Daqui, vendo as pedras que choram sozinhas no mesmo lugar, penso que talvez elas sejam as mais corajosas, pois aqui elas prevalecem. Aqui elas espalham-se pelo chão, como num tipo de convite rústico para que eu siga em frente.

Não sinto medo, assim como elas, e talvez seja justamente por minha alma agora assemelhar-se a estes pequenos corpos brutos de matéria inerte, que não têm para onde ir. Não têm um motivo forte para seguirem em frente. Esperam, algumas por toda uma eternidade, que chegue alguém para chutá-las, ou que ao menos algum abalo sísmico ocorra, mudando todas elas de lugar, para variar um pouco suas existências vazias.

No final, muitas delas terminam aqui, adornando o cenário do próprio fim. Do fim de tudo.

Engraçado como às vezes temos curiosidade em saber como será nossa chegada aqui. Mas, conforme nos aproximamos, a curiosidade dissipa-se, e o medo vem, seguido da vontade de voltar atrás, quando já não há mais volta.

Meu companheiro dourado teve uma escolha, e mesmo hesitando no último instante, ele sabia que era uma decisão inevitável. Desde o início estava ciente que terminaríamos separados um do outro. Não, minto, não desde o começo, mas a partir de um certo ponto. Acho que foi naquele dia, quando voltou-me um olhar triste, o primeiro dos muitos que seguiriam desde então. Fazia o possível para disfarçar, mas não conseguia encobrir seus pesares profundos. Admirava-o por sua transparência.

Mas, agora isso tudo não importa mais. Eis o fim ali adiante. Não pretendo olhar pra trás, mesmo porque não verei mais nada deste ponto onde já me encontro.

Fecho os olhos, jogo-me no nada infindável.

É confortável... É silencioso... Minha alma cala-se... Meus pensamentos dissolvem-se...

É o fim... Apenas o fim...

2 comentários:

  1. Se o andarilho tivesse comunicado a polício nada disso teria acontecido

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  2. Hahahaha!

    Se bem que dá pra temer mais pela vida do cavalo. De ouro, olhos de diamante, cavalgando sozinho de volta pra cidade mais próxima...

    Isto se formos interpretar sua descrição num sentido mais literal (deixo isto aberto pra cada leitor).

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