terça-feira, 13 de outubro de 2009

[POKÉMON SICKNESS] - #393 - Piplup

Baseado em uma história real.


Farham, Inglaterra em 5 de agosto de 1914

Minha amada Rosely,
Escrevo-lhe esta carta pela última vez em meu escritório antes de partir para aquela que será, com certeza, não só a maior aventura de minha vida, como a última grande aventura sobre a face da Terra. Sei que a idéia de que um grupo de destemidos homens tentará cruzar o Antártico de uma ponta a outra parece loucura a uma dama tão delicada quanto bela, mas lhe digo, meu amor, que um homem deve fazer o que um homem tem que fazer.
Partiremos esta tarde a bordo do Endurance, nesta empresa que deve durar pouco mais de um ano. Como sentirei falta deste escritório, deste cheiro tão particular de tabaco que meu saudoso pai levou anos para construir, de como o Sol bate sobre os móveis ao entardecer, e podem-se ver minúsculas partículas de pó!
Mas isso não é nada, claro, comparado ao tanto que sentirei falta de meu amado anjo nesta Terra, que certamente tomou longas noites de planejamento do Senhor para que tão perfeito ser fosse formado nesta terra! Linda, é assim que minha Princesa é, como se fosse pintada qual por pincel em tela fina! Amo ouvir sua voz pura cheia de ternura, amo seu riso, o leve som de seu beijo em meu rosto, flor de esperança. Amor perfeito, que céu pode escurecer com seu sorriso? Seu sorriso angelical, o som de uma doce flauta, é como o brilho do pôr-do-sol a nascer. Ah! Se pudéssemos guardar em uma caixinha esses risos mágicos e eternos... Amo seus olhos quando, ouvindo uma história, se enchem de mistério, o brilho de teus olhos.. O teu sorrir de criança! É a essência da minha vida.
Estou bastante ansioso, minha amada Rosely, essa expedição, além de aventura e conhecimento, me trará fama e dinheiro o suficiente para que possa me estabelecer, e finalmente nos casarmos como tantas vezes juntos sonhamos. Em pouco mais de um ano, será a respeitável esposa de um dos últimos bravos desbravadores deste mundo.
Sinceramente seu, John.

Plymouth, Inglaterra em 6 de agosto de 1914

Oh minha amada Rosely,
Escrevo-lhe a presente epístola ainda entornado em profunda emoção, pois agora tenho a certeza de que esta empresa será a maior aventura da história das grandes aventuras, e que assim está predestinada pelo desígnio divino. Bem, acho melhor explicar-lhe os eventos desta tarde.
Com grande cobertura da imprensa, a serviço de vossa majestade, o mundialmente famoso capitão Shackleton fez zarpar o Endurance em direção a Geórgia do Sul, onde encontraremos o navio de reabastecimento vindo da Nova Zelândia. Essa expedição será grande, todos ali sabiam disto, e pude sentir o olhar de inveja recaindo sobre mim, como único e exclusivo repórter da coroa britânica nesta missão. Shackleton é um veterano dos mares e heróico sobrevivente, tenho certeza de que não há nada a temer nesta jornada. É verdade que o norueguês Ronald Amundsen foi o primeiro a chegar ao Pólo Sul, mas com certeza esta jornada retomará a glória e a conquista para os braços da mãe de toda civilização: a coroa britânica.
Prova irrefutável disso foi que, algumas poucas horas após zarparmos, o Endurance foi abordado pela marinha real britânica. Não se preocupe, minha amada, não havia nada equivocado sobre a nossa embarcação, acontece que, como deve ter conhecimento, na noite de 4 de agosto de 1914, o governo britânico, sob o primeiro-ministro Henry Asquith, declarou guerra ao Império Alemão. Ora, guerras vêm e vão, e tenho certeza de que esta será breve, e não trará maiores conseqüências ao curso da história, e de mesma forma assim enxergou o sábio almirantado Britânico, que liberou o Endurance da convocação obrigatória de estado de guerra, e assim podemos finalmente partir em nossa aventura.
Como vê, a sabedoria dos homens e a providencia divina estão ao nosso lado, não há o que temer.
Com amor, John.

Recife, Brasil em 22 de outubro de 1914

Em triste estrada seguimos o mar
Em tristes dias triste tempo triste agonia
Em tristes solidões, tristes pensamentos
Me fazem falta seus alegres momentos
Sua alegria eterna, sua felicidade invejável
Seu sorriso angelical em meio ao mar maleável
Em meio às dores da vida, em meio às coisas ardidas
Seu sorriso me dava alegria
Como eu sinto saudade e queria ver
Nem que fosse só por um dia
Esse sorriso angelical que me trazia paz e harmonia...
Como me faz falta
Seu sorriso angelical...

Montevidéu, Uruguai em 14 de Novembro de 1914

Minha amada Rosely,
Percebo, quase acidentalmente, que já são quase três meses no mar, e pouca coisa realmente interessante há para relatar em águas conhecidas, a não ser minha saudade por ti. O que um não-marujo pode dizer sobre uma estadia de três meses ao mar que não possa ser emulado pela melhor das literaturas?
Temos 26 tripulantes além de Shackleton, compostos por cientistas, médicos, marinheiros profissionais, navegadores, ex-militares da Marinha Real Inglesa, além de mim, 69 cães mestiços para puxar trenós (os quais já conheço todos pelo nome a esta altura de viagem), dois porcos e um gato, que apesar do nome Madame Chippy, é macho. Nada particularmente incomum aconteceu até então, senão o fato de que adicionamos um clandestino à tripulação.
Conversei bastante com ele, seu nome é Perce Blackborow, e seu navio afundou. Ele e seu amigo Willian Bakewell estavam procurando emprego no porto, e o capitão contratou Bakewell, mas não Blackborow, devido à pouca idade e inexperiência. 17 anos e já tem um naufrágio nas costas, pode acreditar nisso Rosely?
Bakewell no entanto ajudou o amigo a embarcar clandestinamente, e ele permaneceu escondido no armário por três dias, enquanto o navio ancorava. Eu o descobri acidentalmente devido a Madame Chippy, e ele me implorou para que mantivesse o segredo até estarmos em alto mar, onde o capitão não teria muita escolha senão utilizar mais um par de mãos hábeis. Assim o fiz, e este será o nosso segredo.
O capitão Shackleton, entretanto, não pareceu nada contente com a adição, e a cena foi deveras memorável: desconfiado que os números de suprimentos não estavam fechando, reuniu toda tripulação no deck para um memorável sermão, que faria o mais tarimbado e antigo dos estivadores se encolher de medo. O carisma do capitão Shackleton é realmente apavorante: imagino que nada menos do que o necessário para sobreviver ao Antártico. Bakewell cedeu à pressão e, terrificado, confessou a verdade, apresentando seu companheiro ao capitão.
Shackleton terminou sua performance se aproximando de Blackborow e, a menos de um palmo do seu rosto, gritou “Sabe que nessas expedições nós freqüentemente ficamos famintos e, se há um clandestino a bordo, ele é o primeiro a ser comido?” com uma entonação suficiente para fazer qualquer homem adulto simplesmente se encolher e chorar, mas o garoto Blackborow apenas olhou o físico avantajado do capitão e respondeu “Eles teriam mais sorte tentando o senhor primeiro, senhor.”
Shackleton escondeu um sorriso satisfeito e o entregou para Frank Wild, com as ordens de “apresentá-lo ao cozinheiro primeiro”. Blackborow acabou se provando um valioso instrumento na tripulação, e todos achamos que no fim tudo acabou bem.
Dentro de 20 dias devemos chegar à Geórgia do Sul, e então a expedição realmente começará.
Com amor, John.

Ponto Rei Eduardo, Geórgia do Sul em 5 de dezembro de 1914

Minha amada Rosely,
Esta será a última carta que receberá em algum tempo, mas peço que não se preocupe, pois o motivo de tal é o melhor possível: estamos partindo hoje da Geórgia do Sul em direção ao outro lado do continente Antártico, de modo que não terei mais como enviar cartas. A civilização ficará para trás, e apenas a aventura nos aguarda. Naturalmente continuarei escrevendo como uma forma de registro, mas as epistolas daqui por diante muito provavelmente lhe serão entregues por minhas mãos, tal qual meu infinito amor e dedicação. Ore por mim, minha amada. Estaremos juntos em breve, não falta tanto agora.
Eternamente seu, John.

Ilhas Visokoi , Arquipélago Sanduíche do Sul em 24 de dezembro de 1914

Oh Rosely, oh Rosely!
Você deveria estar aqui para ver o que eu tenho visto nestes dias cada vez mais frios. Mas o frio, bem, o frio é um pequeno preço a se pagar por esta visão da criação em toda sua magnitude, que poucos homens tiveram e terão o privilégio de ver até o fim dos dias. É exatamente como se descrito pelo velho marinheiro: à nossa esquerda então o sol se levanta, do mar se eleva; em um claro esplendor... depois vai se pôr à direita no mar.
É uma visão única e impressionante.
Os icebergs que rompem a linha da água são colossos titânicos e impressionantes. Maiores que as mais altas construções que já vimos em Londres, e o capitão disse que estes são pequenos, pois degelaram bastante em seu caminho até aqui. Para qualquer lado que se olhe, não se vê a mão do homem, como se jamais houvesse existido neste mundo. Vimos, no entanto, alguns animais interessantes: baleias que são como ilhas explodindo em gêiseres no meio do oceano, cardumes de peixes e, próximo às ilhas, um tipo particularmente estranho de pingüim. São pequenos, andam desengonçadamente, e possuem marcas no peito como se usassem um casaco de inverno, os marinheiros os chamam de “piplups” devido ao piado agudo que eles emitem antes de mergulharem no oceano gelado (Piiiii.... *plup*)
Acho que você realmente ia gostar de ter um desses. Uma coisa estranha aconteceu, no entanto: perguntei brincando ao marinheiro Blackborow se eu poderia levar um desses de recordação, e ele me respondeu, muito sério, que esses animais são criaturas de mau agouro, e que se deve manter tanta distância deles quanto for possível. O que me surpreendeu nisso é que Blackborow não é o típico marinheiro supersticioso, já tive longas conversas interessantíssimas com ele, e o rapaz fala três idiomas, é realmente estranho que acredite nesse tipo de superstição. Mas bem, com superstição ou sem, prometo que vou levar ao menos algumas fotos para você desta fantástica viagem.
Feliz Natal, meu amor, que o Nosso Senhor abençoe os seus dias, como tem abençoado os meus.
Sinceramente seu, John.

Círculo Polar Antártico em 15 de janeiro de 1915

Rosely, meu amor,
Tivemos hoje o primeiro real contratempo neste empreendimento. Acordei ao som dos cães ladrando e dos homens trabalhando ruidosamente do lado de fora do navio, pensei por um momento que havíamos chegado ao nosso destino, mas o cronograma não fecharia. O navio praticamente não balança mais e, antes que eu pudesse me vestir e sair da minha cabine, ouvi a madeira estalando ruidosamente. Foi um grande susto que tomei, mas não tão grande quanto o que tomei ao chegar ao convés, e perceber que não havia água ao redor do barco! Logo encontrei o capitão, e ele rapidamente me pôs a par da situação: durante a madrugada um bloco de gelo escorregou por baixo do Endurance e, ao emergir, levantou o navio no alto de uma pequena plaforma. Agora os homens estão cavando uma rampa para devolver o navio ao oceano, mas deve levar algumas semanas na melhor das hipóteses. Do contrário a outra opção é esperar o bloco de gelo nos levar por algum lugar.
De qualquer forma, parece ser só um contratempo, o capitão não parece preocupado.
Sinceramente seu, John.


Círculo Polar Antártico em 02 de fevereiro de 1915

Rosely, minha amada,
Temo que minha estadia aqui vá demorar um pouco mais do que o esperado. O capitão Shackleton está cancelando o processo de escavação do gelo por vários motivos: o primeiro, e mais importante, é que os homens e os animais estão cada vez mais famintos com o trabalho duro e, neste ritmo, as provisões vão acabar antes que consigamos algum resultado. Houve um deslizamento e alguns cães morreram, além dos marinheiros Bolts e Kinglesthorn ficarem feridos. Nada grave, não se preocupe.
O capitão disse que o melhor a fazer nessa condição é esperar o bloco de gelo no qual estamos presos nos levar próximo ao continente, ou a uma das ilhas, e de lá seguir em um pequeno bote para conseguir ajuda de um rebocador. Até lá estaremos à deriva, mas não se preocupe: temos suprimentos suficientes, e o cozinheiro me disse que, por via das duúidas, não iria enterrar os cachorros mortos. Achei que fosse brincadeira, mas ele me pareceu bastante sério. Seja como for, não se preocupe. Logo estarei em casa.
Com amor, John.

Círculo Polar Antártico em 9 de abril de 1915

A branda brisa arfava, a espuma alva voava,
E o sulco solto a esfriar...
Jamais humana voz soara antes de nós
Naquele mudo mar.
E o vento cede, as velas cedem... Quem iria
Tristeza mais triste encontrar?
E nós falávamos tão-só para romper
O silêncio do mar!

Rosely, minha amada Rosely, a cada dia que passa os dias vão ficando cada vez mais curtos, e as noites cada vez mais longas. Tive uma longa conversa com Blackborow e ele disse que, conforme a sua experiência, a menos que o bloco de gelo bata em outro, dificilmente vamos sair daqui antes de terminar o inverno.
Ore por mim, minha querida.

Círculo Polar Antártico em 19 de junho de 1915


Santelmo urdia à noite um coriscar de açoite,
Turbilhão e tropel;
A água - um óleo de bruxa - verde, azul e branca
Ardia sob o céu.
E alguns em sonhos garantiam ver o Espírito
Que atormentar nos deve;
Nove braças ao fundo, havia nos seguido
Do lar de névoa e neve.

Está fazendo mais frio a cada dia. Os dias estão ficando cada vez menores e, com eles, a disposição e o humor dos homens. Estamos morando há mais de seis meses neste bloco de gelo, navegando sem rumo ao sabor do oceano. As provisões estão diminuindo perigosamente, e não é mais incomum ocorrerem brigas devido ao cansaço, a fome, o frio ou uma combinação sinistra de ambos. Alguns homens já falam em sacrificar os cães, outros em sair para caçar alguns piplups, mas, de qualquer forma, está muito frio para fazer qualquer coisa. Mesmo escrever tem sido extremamente penoso, o inverno aqui é cruel como jamais pode ser imaginado, e temo que meus dedos acabem quebrando como pedaços de cera se eu forçá-los demais. Continue rezando por mim.
John.

Círculo Polar Antártico em 9 de julho de 1915

Eu não posso ir para casa
Eu não posso dormir
Eu não posso dar
Eu não posso receber
Quero ir para longe deste baile de soldados abatidos
Para casa, você ainda se lembra de mim?
Eu não tenho palavras melhores do que "obrigado por seu amor "
Eu não quero morrer aqui.

Círculo Polar Antártico em 13 de agosto de 1915

Depois de meses de aluguel atrasado, finalmente o cruel inverno antártico cobrou seu preço. O bloco de gelo onde o Endurance está se partiu, e o navio afundou numa fossa. Estamos esvaziando o navio e montando acampamento ao céu aberto, é só questão de tempo até a força descomunal do gelo esmagar completamente o Endurance. Perdemos alguns homens no deslizamento, assim como alguns cães, o que ironicamente aumenta um pouco nossas chances, devido a racionalização dos suprimentos. Passamos o dia inteiro com fome e com frio, mas ninguém fala senão o extremamente necessário. A dor no corpo devido ao frio é tanta que mal conseguimos dormir, isso quando não somos acordados pelos estalos ruidosos do Endurance sendo lentamente mastigado pelo gelo.

Círculo Polar Antártico em 31 de agosto de 1915

Após nove meses entalado, esta noite o Endurance finalmente sucumbiu à pressão do Antártico e é desmantelado pelo gelo, e seus restos são tragados pelo oceano. Vimos com melancolia e impotência o nosso lar nos últimos 12 meses sumir entre as prístinas água salgadas do oceano.
Restaram agora 20 homens, 14 cães, um acampamento, um bote salva-vidas, e mantimentos que não serão suficientes para todos.

Círculo Polar Antártico em 13 de setembro de 1915

Nosso suprimento de alimentos está quase acabando, de modo que mesmo o mais supersticioso dos homens está disposto a caçar alguns piplups, e qualquer outra coisa viva que se possa encontrar nessa região. Além do mais, como nossa sorte pode ficar pior do que já está? Os ventos gelados do inverno, e as tempestades de neve, provaram que a escolha do material usado em algumas das roupas mais leves foi um erro enorme. Elas encharcam constantemente, e a água dentro das botas causa sérios problemas de circulação do sangue. Cinco tripulantes estão com tuberculose, e outros quatro com gangrena nos pés, inclusive eu próprio, e meu amigo Blackborow. Fica cada vez mais claro que não resistiremos a outro inverno, e que temos que nos preparar para zarpar assim que o verão chegar.

Círculo Polar Antártico em 23 de setembro de 1915

Ainda escrevo apenas para ter algo com que manter a sanidade. Jamais mostrarei tão horríveis relatos a Rosely. Caçar os pingüins tem realmente se mostrado uma tarefa infernal, nós perdemos três homens em bolsões de gelo fino, e um atacado por um leão marinho. Imagino que realmente essas criaturas devem realmente ser amaldiçoadas, e a superstição dos marinheiros, da qual zombei do alto de meu conhecimento acadêmico, estava correta. Neste lugar, de que valia possuir um diploma ou um doutorado? A morte, o frio e a insanidade não pedem credenciais, ao contrário do que gostamos de nos iludir enquanto estamos quentes e protegidos em nossas cidades. Essa é a grande verdade da vida e ao mesmo tempo a piada da existência humana.
Falando em piada, durante o dia, e a noite toda, ouvimos o piado irritante daquelas criaturas, e me pergunto se não seria melhor simplesmente furar os tímpanos do que continuar com essa tortura. Em face da dificuldade e do risco em conseguir carne de pingüim, vamos sacrificar os cães que restam nos próximos dias, embora só de olhar pode-se ver que não há muita carne a ser tirada deles.

Círculo Polar Antártico em 7 de outubro de 1915

Apesar da chegada da primavera, o caminho para o mar parece não vir tão cedo, mas na primeira chance o capitão e os poucos homens ainda capazes se lançarão ao mar tentando chegar à ilha Elefante. Desistimos de caçar piplups devido à complexidade e ao risco da tarefa, não fosse o bastante esse bloco de gelo ser instável como areia, os bichinhos ainda têm a capacidade de cuspir água com força, e tudo que você não quer aqui é ficar molhado. Foi assim que minha gangrena piorou. Esta semana mais três homens pioraram da pneumonia, tuberculose ou qualquer coisa assim, e Blackborow teve os pés amputados por causa da gangrena. Amanhã será a minha vez.
Inferno na Terra esquecida por Deus em 10 de outubro de 1915

O capitão partiu no bote salva-vidas acompanhado de 3 homens, mas eu nem percebi. Ontem meus pés foram cerrados devido à gangrena, utilizando uma faca de cozinha quase cega, e sem nenhum tipo de anestésico, bebida ou atenuante, senão praguejar e gritar. Meus pés foram cerrados. Lentamente.


Círculo Polar Antártico em 27 de outubro de 1915

Hoje sacrificamos Boris, o último dos cães que embarcaram conosco. Amputado, há mais de meses comendo apenas gordura de foca, carne de cachorro, e eventualmente um biscoito integral (eles estavam sendo racionados, mas mesmo assim terminaram semana passada), nada me resta senão ouvir aqueles malditos pingüins do inferno zombando de mim dia e noite. Eu não me importo mais em comê-los, apenas queria esganar um por um daqueles demoniozinhos azuis, para que eles fechem sua maldita matraca do inferno.

Círculo Polar Antártico em 15 de novembro de 1915

Estou com febre, possivelmente uma infecção devido à amputação. Passo o dia oscilando entre delírios, sonhos, fome e frio. Lembro de uma velha canção que costumávamos ouvir juntos, lembra disso?
Viaje para a Lua
Você está dormindo, resolvendo um sonho
enquanto a luz da estrela deserta puxa as cordas do fantoche
Eu me esqueci de sorrir para poder ser forte
Tenho certeza de que se estivermos juntos, eu posso consegui-la de volta
Note que
Eu estou aqui esperando por você
Mesmo se o futuro for diferente de agora
Estou aqui esperando por você
Gritando
Certamente o meu coração está dobrando no fio que nos conecta
Não era preciso chorar
para me acordar naquela época
E por Deus, o que é preciso para tirar o piado agudo desses pingüins da minha cabeça? Por que eles não param? POR QUÊ? CALEM A BOCA SEUS MALDITOS MONSTROS DO GELO!

Círculo Polar Antártico em 21 de novembro de 1915

Formigas vivem em formigueiros. Ursos vivem em cavernas. Pessoas vivem em CASAS... não no gelo. Pessoas não são cobertas com pele, e nossos corpos não se dão bem com frio, chuva ou vento. Nosso pé dói se pisamos numa simples pedrinha afiada. O frio congela nosso sangue, e os malditos pingüins não calam a boca, não consigo dormir. Estamos absolutamente sem comida há três dias, não sinto nada da cintura pra baixo, e as malditas criaturas piam noite e dia. Bem, se houvessem noites e dias aqui... Acho que deu para entender.
Não temos nenhuma noticia do capitão ainda, possivelmente ele está morto, e nenhuma ajuda virá.

Círculo Polar Antártico em 28 de novembro de 1915

Décimo dia sem comida, nós chegamos ao nosso limite. Eu sei o que acontece agora. Ouvi os homens falando enquanto eu fingia delirar de febre. Ou eu realmente delirava de febre? Acho que é inútil conjecturar a esta algura. O suprimento de carne acabou, mas existe onde conseguir mais sem ter que correr atrás dos malditos pingüins do inferno que só nos levam à ruína. Olhei ao redor. Parece que eles planejavam levar as palavras do capitão ao pé da letra. O clandestino seria o primeiro a ser...
Preciso fugir daqui, preciso ir embora, preciso sair desse inferno com o pouco de humanidade que me resta. Prefiro morrer no gelo fora do acampamento, talvez eu consiga ainda esganar um ou dois malditos pingüins antes que eu morra. Sim, é o que farei: vou rastejar para fora daqui enquanto todos tiverem dormindo. Morrerei, certamente, mas morrerei ao menos como um cidadão britânico. Ao menos isso.

Anotação final em 29 de novembro de 1915

Minha amada Rosely,
Nestes dias cruéis, invernais e infernais, perdi tudo que era mais importante para mim antes desta fatídica viagem. Perdi minha fé em Deus (apenas quem nunca esteve neste inferno gelado pode acreditar que tal ser realmente existe, e se existe é ridículo acreditar que ele se importa, ou tem algum bom sentimento no coração), perdi meus pés e, honestamente, perdi minhas memórias de você. Não lembro como é o seu rosto ou a cor de seus olhos, e todas as lembranças boas que remanescem parece que aconteceram com outra pessoa... em outra vida.
Não sei se ainda te amo. Será que sinto algo por você? Eu ainda sinto algo?
Choro às vezes, querendo lembrar. Minhas lembranças se foram.
Como você era? Que tipo de pessoa você era? Que tipo de pessoa eu era antes disso tudo?
Não sei se ainda te amo.
Não sei se o meu coração ainda reagiria à tua voz. Não acho que meu coração reagiria a mais nada.
Ou se meu corpo ainda reagiria ao teu toque. Não acredito mais que preciso do teu olhar para viver.
Tua presença já não me faz falta, pois nada mais me faz falta: estou acabado.
Nossa música é apenas uma canção antiga. Teu perfume é só um cheiro que consegui guardar em minha mente. Tua foto no álbum só representa um conhecido de alguns anos atrás... Não sou mais humano o suficiente para ter sentimentos tão profundos.
Acho que não consegui fugir a tempo, minha humanidade se foi.

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John era exatamente o que você via: um farrapo humano delirando entre a fome, o frio, a febre (causada pela infecção da amputação nada cirúrgica) e a falta de sono. Nesta época do ano os piplups escolhem os parceiros para o próximo inverno, e por esse motivo os machos da espécie cortejam as fêmeas disponíveis. Acontece, entretanto, que os piplups possuem uma proporção natural de 87,5% de machos para 12,5% de fêmeas, de modo que a disputa por uma fêmea é bastante acirrada, e é freqüente se ouvir por dias a fio os cantos de cortejo dos piplups, o que para humanos soa apenas como meros pios.
Além de tudo, John estava convencido de que seria canibalizado por seus colegas de desastre assim que estes devorassem o seu amigo Blackborow primeiro, e que precisava fugir dali antes que a última desumanidade se abatesse sobre ele. Devido aos delírios, e devido também à forte cena do discurso do capitão, que ficou gravada impressionantemente em sua mente, John não compreendeu perfeitamente o que acontecia entre os homens naquele momento: eles realmente discutiram se deveriam antropofagisar o marinheiro Blackborow, mas isso devido ao fato de que ele havia falecido há poucas horas, fato esse que John nunca veio a tomar ciência, e pensava que se tratava de comer uma pessoa até então viva. Se você pensar no assunto, as duas possibilidades são realmente horríveis, mas a que John vislumbrava conseguia ser pior devido a uma boa margem de votos.

Enquanto todos dormiam, John se arrastou pela neve, engatinhando, agarrando-se com unhas e dentes a qualquer saliência que pudesse usar para avançar e sair na direção do acampamento, praticamente uma escalada. Sua cabeça doía, seus olhos lacrimejavam de fome, e arrastar os cotocos feridos que outrora foram seus pés na neve não parecia igualmente menos doloroso.
Mas ele sabia onde ir, em seu delírio e loucura não havia espaço para dúvida. Seguiu o incessante piado até a beirada do bloco de gelo, onde alguns piplups estavam reunidos, mas mergulharam assim que o avistaram. Tomado por uma loucura animal, por um ódio contido e guardado contra tudo que havia lhe acontecido até então, uma última tentativa desesperada de tirar do peito tudo que não mais lhe cabia, ou então apenas a mera chance única de descontar em alguém antes do fim, se jogou como uma lince ensandecida sobre o bando de piplups à beira do bloco de gelo, e todos pularam na água, exceto por um, que John conseguiu agarrar firmemente entre seus dedos.
Como já foi dito, era um farrapo humano, sim, uma sombra patética do que já fora um dia enquanto pessoa, sim, e agora, a um passo de ter sua insana vingança, brilhava em seu olhar um brilho de loucura e insanidade, que conseguiam deixar suas feições mais profanas e perturbadas do já era até então. Com efeito, John começou a rir. Rir alto e insanamente, rir como um doente demente.
Por um momento esqueceu a dor, o frio, a fome e a desesperança onipresente do Antártico, e apenas sentiu a criatura, o filhote, não, mais do que isso, a VIDA pulsando, se debatendo em suas mãos. Então disse ele ao filhote entre seus dedos, com um carinho e ternura impares, como se esta fosse a criatura mais amada em toda história da criação até este ponto. Suas mãos, portando a pequena ave, tremiam. Seu queixo batia comulsivamente, seu nariz estava congelado e seus joelhos simplesmente queimavam sobre o gelo. Ainda sim, ele disse com todo carinho e cuidados humanamente possíveis:

“E tudo que eu sinto é este momento
E tudo que eu respiro é sua vida
Porque mais cedo ou mais tarde isso acabará
E eu não quero sentir sua falta essa noite

E eu não quero que o mundo me veja
Porque não creio que entenderiam
Quando tudo estiver destruído
Eu só quero que você saiba quem eu sou
E eu desistiria da eternidade para toca-lá
Pois sei que você me sente de alguma forma
Você é o mais próximo do paraíso que eu chegarei
E eu quero ir para casa agora .”

Dito isso, abocanhou com uma mordida só a cabeça do pinguinzinho, o que foi uma cena particularmente dantesca, tendo em vista que ele efetivamente arrancou a cabeça do animal em troca de alguns dentes e pedaços da sua gengiva. John começou então a chorar compulsivamente, infantilmente, de forma aberta e abrupta, como homem algum deve jamais chorará em momento nenhum.
Como tudo mais na vida, esse ataque insano de insanidade não pôde deixar de ter conseqüências, e efetivamente as teve: de imediato outros piplups surgiram para defender o da sua espécie. Como não havia mais o que defender, pois o filhote já havia sido decaptado, restava a boa e velha dose de ultraviolência e vingança pessoal. Os pingüins bicaram o que conseguiam alcançar de John, o que incluía (mas não limitava a) seus olhos, sua gengiva, suas amputações nos pés, e seus dedos congelados que quebravam como velas de cera. A dor inenarrável, velha companheira de toda desventura humana. Os nervos sensoriais registrando cada célula de sua língua sendo arrancada por bicos inclementes, suas iris sendo atravessadas e coisas de menor calão.

Mais ou menos na altura em que os pingüins estavam mordendo sua língua, como se fosse um pinto pegando uma minhoca (e, com efeito, arrancando-a) John sentiu vagamente alguém o arrastando dali, puxando-o pelo que restara de suas pernas.
Sem poder enxergar (pois as bicadas levaram seus olhos) ou falar (assim como sua língua), John pôde ouvir perfeitamente a voz do capitão Shackelton, que havia acabado de retornar com uma traineira para tirá-los dali e levá-los para casa. Ah, se ele ao menos tivesse chegado dois minutos antes...

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