sexta-feira, 2 de outubro de 2009

[POKÉMON SICKNESS] - #039 Jigglypuff

Pokémon Sickness é uma nova série de textos que eu postarei aqui no blog, em parceria com o Aélsio, que fará ilustrações.

Bem, o que é Pokémon Sickness? São contos isolados, cada um sobre um dos monstrinhos, sem nenhuma relação entre si, senão o fato de que se passam no mesmo universo.

Outro ponto em comum às histórias é que elas tentarão buscar o que há de mais doentio, asqueroso e perverso na pobre alma deste que vos escreve. O que implica que as histórias envolverão temas como drogras, estupro, mutilação, suicídio, tortura, incesto, abuso infantil, e daí ladeira abaixo. Sim, isto com pokémons.

Então, eu realmente recomendo que simplesmente pule os textos desta série caso se sinta ofendido, tenha menos de 18 anos, ou simplesmente não vá muito com a minha cara. Bem, era o que tinha a explanar. Aos que decidiram continuar, bom texto, e obrigado pela preferência.

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Ricardo foi tomado por um sentimento branco, puro e cristalino. Como se mergulhasse em uma piscina de luz quente. Isto deveria ser a sensação equivalente, ele ponderou, a perder a virgindade, embora quanto a isto ele poderia tão somente imaginar. Fosse como fosse, o que realmente importava é que ele havia finalmente feito. Estava concluído, não podia ser desfeito agora.

Não que ele sequer pensasse em desfazer, é claro. A inigualável sensação de possuir borboletas dançando no seu estomago lhe dizia que ele estava fazendo certo, era uma embriagante sensação de triunfo – até onde ele se lembrava, a primeira em muitos anos que não tinha qualquer relação com World of Warcraft.

Passou a língua sobre os lábios secos mais uma vez, e seus dedos correram pelo teclado, checou seu e-mail no Gmail, e um abismo de decepção o invadiu quando não viu a faixinha branca de nova mensagem no alto da lista de e-mails (todos compostos por mensagens em fóruns, notificações do YouTube, listas de discussão e coisas do gênero – nenhum email pessoal, até onde podia ser visto na tela). Respirou fundo, e então ele viu o contador de novas mensagens modificar para (1), e novamente a euforia triunfante tomou conta de si. Era isso, havia sido confirmado, tudo aconteceria conforme ele planejara. Estava confirmado. Havia feito. Haviafinalmente comprado.

Tamanha foi a euforia que quase emitiu um som – definitivamente estava nos seus melhores dias.

Finalmente aliviado, se largou para trás na cadeira. Quem olhasse sua expressão poderia julgar que ele acabara de desarmar uma bomba, completar uma neurocirurgia de 14 horas, ou construir um castelo de cartas de 4 andares. Mas nada disso, não foi isso que ele fez. O que ele havia feito era comprar algo na internet.

Ora, não é a compra em si que o deixou nesse estado de vitória e superação, já que nenhuma anormalidade consistia para ele comprar produtos pela rede, a bem da verdade muito mais era o processo inverso, sobretudo quando envolvia (bate na madeira) falar com pessoas. Não, não foi o que ele comprara, e sim a finalidade com a qual ele comprara. Esse era o segredo aqui, essa era a pergunta do milhão de dólares: não “o que”, nem “como”, mas... por quê?

O que, você me pergunta, leva alguém a este estado semi-nirvanístico apenas com uma simples compra na internet? E eu te responderei: o mais antigo e nobre de todos os sentimentos, aquilo que nos define como espécie única dentre todas. O sentimento sobre o qual foram construídos reinos, impérios e nações, o sentimento em nome do qual vidas foram arruinadas, purezas maculadas e chagas propagadas. Enfim, o mais humano de todos os sentimentos, filha mais velha do ódio com a impotência: a vingança.

Ricardo tocou o seu próprio ombro, tenso. Imaginou por um momento como seria a sensação de ser tocado por outra pessoa, mas tentou afastar esses pensamentos: uma coisa de cada vez, e não podia sonhar longe demais, ao menos não agora. Não agora que finalmente estava tão perto de finalmente realizar alguma coisa. E só então se deu conta de que estava tão perto, embora essa súbita ciência também o fez perceber o quão profundamente apavorado estava. Realmente ia acontecer, não ia? Não era mais um plano idiota de criança, ou nada do tipo, era uma realidade... Cara, isso realmente o assustou!

Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, afastando os pesados óculos de aro grosso com a outra mão. Tentou se concentrar, lembrar do que estava fazendo, do por quê estava fazendo, do que ele precisava fazer para finalmente poder seguir com a sua vida.

A primeira vez que ele viu Amanda foi no dia em que ela foi transferida para a sua escola. Isso era por volta dos seus catorze anos e, Deus!, como ela era perfeita. “Ela sorria como um anjo, e deve chupar como um demônio”, foram esses seus exatos primeiros pensamentos ao vê-la pairando graciosamente no corredor da escola daquele verão. Mesmo naquela idade ela já possuía seios empinados e firmes, e pernas que fariam um cavalo de corrida ficar deprimido. Ah, o rosto de anjo e as madeixas loiras, tão absolutamente perfeita...

O segundo pensamento depois disso envolve uma parede branca, e um bocado de sangue e reboco no seu nariz. Aparentemente algumas pessoas pensavam que ela era boa demais para ser observada por alguém como ele, o que era uma opinião da qual ele próprio compartilhava. Quer dizer, se Deus quisesse que ele pudesse ficar no mesmo hectare de alguém como ela teria lhe dado alguma qualidade, não é mesmo?

A resposta mais provável era “sim”, e naturalmente poucos neste mundo duvidariam disso. E Marcos era uma dessas pessoas. Marcos, no entanto, tinha uma forma toda própria e especial de demonstrar ao mundo, e sobretudo ao patético Ricardo, o que ele pensava. Essas “demonstrações de opinião” usualmente terminavam com Ricardo na enfermaria, e essa não seria uma exceção.

Obviamente que ele disse, quando questionado pela professora responsável, que escorregou. Sozinho. Parado no meio do corredor. Ok, Ricardo era um péssimo mentiroso, mas o que mais ele poderia dizer? Que o cara mais “cool” do colégio bateu com a cabeça dele contra a parede, apenas porque ele estava olhando a garota nova, e absolutamente perfeita, que provavelmente Marcos já estaria enjoado de comer até o fim da próxima semana? É, certo...

Ser feio, tosco e patético já era suficiente, não precisava ser suicida também, obrigado.

E além disso, mesmo que ele contasse a verdade, que diferença faria? Se em um sonho louco de verão Marcos fosse, sei lá, expulso, e ele sobrevivesse o bastante para continuar freqüentando o colégio, e a turminha de Marcos simplesmente “deixasse passar”, se todas essas coisas improváveis acontecessem... mesmo assim nada mudaria. Levaria menos de uma hora para que algum candidato a macho alfa do colégio tomasse o seu lugar. Afinal de contas, era isso que as garotas gostavam e, infelizmente para ele, pisar em caras como ele (literalmente também, mas não limitado a) é parte do ritual de acasalamento da nossa espécie. Alguns nascem para ser o herói do filme de artes marciais, alguns nascem para ser o figurante que entra em cena só para tomar porrada e fazer o herói parecer mais heróico ainda.

Essa, naturalmente, não foi a única vez que os “caras legais” da escola o lembraram de qual era o lugar dele, sob o olhar de aprovação das garotas que ele queria para si. Nem todas as vezes envolviam dano físico, embora seus algozes não fizessem muito esforço para impedi-lo, e sim toda sorte de humilhação que se possa imaginar. Nesses anos todos, Ricardo acabou aprendendo algumas lições valiosas: que havia uma forma certa de se vestir (que envolvia nunca, jamais, chamar a atenção, e apenas usar roupas basicamente iguais), que sua memória era a única coisa com a qual ele podia contar ao voltar da escola (cadernos, livros e materiais escolares NÃO eram para os fracos, conforme ele constatou), e que havia pessoas para as quais ele não podia olhar, lugares que ele não podia ir, e caminhos que ele não devia seguir. Falhar em compreender essas lições, entre outras, lhe resultou aprendizados extremamente desagradáveis, como por exemplo: poucas pessoas podem realmente dizer qual o gosto do excremento humano ao paladar. Ricardo podia.

Como eu disse, não foram lições nem tampouco fáceis de se aprender, e isso é mais do que é necessário dizer sobre sua adolescência.

A partir desse ponto, você já deve ter concluído sobre quem se tratava a sua vingança. O que você deve estar se perguntando é como ele faria isso. Havia Ricardo comprado uma arma na internet, e pretendia entrar em uma festa e sair atirando em todos aqueles cães cretinos? A resposta é não.

Vou mentir se disser que Ricardo realmente nunca considerou essa possibilidade, mas essa não é uma boa idéia. Não porque ele seja capaz de sentir qualquer proto-sentimento de compaixão ou perdão, nada disso. O que fez Ricardo abandonar essa idéia foi simplesmente que outras pessoas já haviam feito isso, e o resultado simplesmente não era bom. As “vítimas” saiam como pobres anjinhos imaculados do Senhor, enquanto o cretino miserável que havia feito isso era apenas um desequilibrado mental sem motivo, provavelmente nazista e pedófilo nas horas vagas. O que, absolutamente, não era verdade, mas no fim era como as pessoas viam as coisas. Isso o fez abandonar a idéia das armas, se Ricardo fizesse isso eles venceriam.

E ele teria sua vitória, nem que fosse a última coisa que pudesse fazer na vida, pelo menos uma vez na vida ele venceria. Nem que fosse uma só, mas ele a teria, e faria valer a pena, faria valer cada segundo. Esse era o pensamento que o mantinha agora, e o fazia se sentir tão vivo e, pela primeira vez, tão … no controle. Essa vez, e só dessa vez, as coisas aconteceriam do seu jeito. Ele teria sua vingança.

O e-mail na caixa de entrada do Gmail confirmava isso.

Teria sua vingança pois o que ele havia comprado não era nenhum tipo de arma, nem nada do tipo, era na verdade algo muito, muito, muito mais... especial...

Duas semanas depois, Ricardo estava agachado atrás de um arbusto do outro lado da rua, onde era a festa de formatura da turma do segundo grau. Todos foram convidados, inclusive Ricardo – o que era uma espécie de última sacaneada para com ele. Não que ele fosse tão importante assim a ponto de merecer uma última pegadinha trabalhada, ele nunca foi nada disso na vida de ninguém.

Depois daquilo cada um provavelmente seguiria um rumo diferente. Alguns iriam para a faculdade, alguns iriam abraçar um emprego, alguns viveriam do dinheiro dos pais, e alguns viveriam da sua boa aparência enquanto pudessem. Enfim, um final de segundo ano particularmente comum, e não era preciso dizer qual dentre esses seria o destino que Amanda abraçaria, ou vice-versa.

Ah, Amanda... tinha planos muito especiais para ela essa noite. Com certeza ela jamais esqueceria enquanto vivesse, e esse pensamento em particular causou um sorriso em Ricardo. Se de nervosismo ou felicidade, ou qualquer outra coisa, jamais saberemos. Nesse instante ele a viu de relance enquanto ela descia de algum carro que custava mais do que todo dinheiro que já passara nas suas mãos até então, embora não tenha visto mais detalhes, pois instintivamente se escondeu no arbusto do outro lado da rua como se ela pudesse vê-lo se ele a enxergasse. “Não que ela fosse se importar”, acrescentou mentalmente. “Não que alguém fosse se importar”, tornou a acrescentar.

Feito isto, só restava esperar. Mil dúvidas percorreram a sua cabeça: e se a entrega atrasasse? E se não funcionasse? Quer dizer, era algo bastante fora da realidade do dia-a-dia, e toda certeza que ele tinha eram alguns vídeos no YouTube e olhe lá.. Tamborilou com os dedos no pulso coberto por uma manga escura, olhou para a sacola de viagem ao seu lado. Repassou um checklist das coisas que havia pego, e não lembrou de ter esquecido nenhuma. Em seguida pensou que seria muito estranho ele lembrar de ter esquecido alguma coisa...

Alguns tensos minutos depois, um som de carro parando em frente a casa onde acontecia a festa chamou sua atenção. Seu coração deu um salto: era um furgão da Fedex. Era isso, estava finalmente acontecendo!

O entregador desceu do carro, deu a volta, e abriu a porta traseira do furgão, conferiu em uma prancheta com auxílio da luz do poste, pegou uma caixa do tamanho aproximado de uma televisão, e se dirigiu em direção à casa. Tocou a campainha e, instantes depois, a porta abriu. Mesmo do outro lado da rua Ricardo pôde ouvir música alta incomodando os seus ouvidos, ali dentro devia estar praticamente insuportável... ou ao menos para quem não era acostumado. Mas se ele fosse o tipo de pessoa que se habituara a este tipo de lugar, aquela entrega não estaria sendo feita agora, e tudo seria tão diferente... Mas não era e, de qualquer forma, era tarde demais para voltar atrás agora. A entrega estava feita, e o homem da Fedex entrava em seu furgão para ir embora. A porta da casa onde acontecia a festa fechou.

Do outro lado daquela porta, dentro da festa, a entrega da caixa havia causado uma certa comoção. As pessoas se acotovelavam para ver o que estava dentro da caixa, já que era não era normal fazerem entregas em uma festa. E esse era o tipo de “não-normal” bom e aceitável, o que as pessoas gostavam e contavam depois, como se fosse uma aventura para se vangloriar depois, mas dentro do socialmente esperado.

Dentre as pessoas na festa, Marcos e Amanda abriram seu caminho até a caixa, cada um a seu próprio modo, e chegaram vindo de lados opostos da festa. Se olharam por um instante de forma tensa, dando a entender que havia uma história entre eles, e então voltaram a atenção para a caixa, que uma garota estava abrindo nesse instante. O som da música baixou, e várias vozes em tons diferentes se fizeram ouvir:

- O que é?

- Ai, que fofo!

- É de verdade?

- É de pelúcia?

- Tá vivo?

- Eu nunca tinha visto um desses pessoalmente... Qual o nome dele?

- Tá perguntando pra mim? Eu lá tenho cara de quem assiste Globo Repórter?

Entre as várias perguntas que permeavam o ar daquela sala, um grito agudo se elevou, e então houve silêncio.

- O-os... os olhos... olhos dele... meu deus...

Várias garotas fizeram uma expressão misturada de asco e medo, virando o rosto. Um garoto comentou em tom baixo, quase um tanto constrangido em não ser ignorante sobre o que era aquela coisa:

- Ouvi dizer que os caçadores arrancam os olhos deles para que eles não fiquem estressados e cantem em qualquer lugar.

O que estava dentro da caixa era uma espécie de criatura... estranha. Parecia uma almofada, um puff redondo com orelhas de gato e patas curtinhas. Era de uma cor rosada, quase roxa, um tanto perturbadora na verdade, mas não tanto quanto o fato de que, no lugar de seus olhos (que ocupariam a maior parte da cabeça), haviam apenas profundos espaços escuros. Era uma figura que ao mesmo tempo evocava uma certa inquietação e tensão, ao mesmo tempo que era fofo e digno de pena.

- Tem mais alguma coisa dentro da caixa – alguém comentou, pegando uma caneta marca-texto do fundo da caixa – E tem um bilhete também... “dar para ele”.

Sem ter muita certeza do que estava fazendo, a jovem apenas colocou a caneta na pata da ... coisa, de uma forma que ela parecia que ia segurá-la. Ao sentir a caneta em sua pata, a criatura de tonalidade roxo-doentia começou a se mexer um pouco mais, e parecer um pouco menos um puff estático. A criatura se debateu um pouco com certa ferocidade, até que finalmente a colocaram de pé sobre uma mesinha. Todos na festa agora prestavam atenção nessa cena bastante incomum, afinal, não era todo dia que um animal exótico de um canto obscuro do mundo era entregue no meio da sua festa e começava a ... cantar?!?

Sim, cantar. A pequena criaturinha exótica começou a cantar naquele dia que acordou cinza, de olhos inchados, em que a noite havia fugido com a lua. A canção se derramou pela sala, ela se despedaçou em mil gotas de dor mais profunda que o som de mil trovões rasgando a noite. Foi essa a maneira que encontrou de entoar uma canção de amor, e fazer sangrar a noite sua dor.

Após alguns instantes, não havia quem presente estava naquela sala que não estivesse com os olhos marejados. Fosse pelo sono, que inexplicavelmente abatia com violência as pálpebras, fosse pela profunda dor e melancolia, que a canção da criaturinha infligia em seus corações. De alguma forma, eles sabiam que a criatura cantava sobre a dor, sobre a melancolia do cativeiro, da mutilação, e da desesperança, mesmo que nenhuma palavra houvesse naquela canção. Essa é uma daquelas coisas que só a música consegue fazer.

Em poucos minutos todos estavam dormindo no chão da sala, não poucos com o rosto inchado em lágrimas.

Alheia a tudo isso, pois não enxergava de qualquer maneira, a criatura mutilada apenas continuou cantando e cantando, mesmo que ninguém ali houvesse para ouvi-la.

Foi mais ou menos nessa altura que a porta de entrada se escancarou, e Ricardo entrou marchando triunfante na sala, com pesados fones acústicos cobrindo seus ouvidos. Embora a proteção o impedisse de ouvir a música, aquela cena o comoveu quase tanto quanto: havia dezenas de adolescentes inconscientes no chão, dormindo profundamente um coma induzido. E ele conhecia muitos deles ali. Ah, como os conhecia...

Havia sonhado com aquilo por semanas, não meses, não, não, anos a fio! Bem, não aquela forma de vingança específica, mas aquela sensação, aquele momento. Era quase bom demais para ser verdade. Mas ERA verdade, e isso fez seus olhos marejarem de alegria.

Ricardo colocou sua bolsa de viagem ao seu lado, e agora abria o zíper lentamente, enquanto olhava em volta sem saber por onde começar. Se sentia como um nerd que descobriu um emulador novo, e agora não fazia idéia do que começar a baixar diante de uma vasta biblioteca de títulos. Na dúvida, decidiu começar pelo básico. Enquanto mexia na sacola podia-se perceber que haviam diversos objetos ali e, após algum tempo, Ricardo puxou um bastão de beisebol e uma filmadora digital.

Colocou a câmera sobre o suporte de marfim da lareira, de modo que ela enfocasse toda sala.

Enquanto se deslocava entre os corpos inconscientes no chão (a princípio tomando o cuidado de não pisar em ninguém, mas então, se auto-corrigindo para lembrar do que estava fazendo ali) pensava honestamente que seria mais difícil. Que na hora teria alguma crise de humanidade, ou falta de coragem, ou piedade, enfim, essas coisas que a gente adora falar que faria, mas na hora apenas seria um bom rapazinho civilizado. Entretanto não foi difícil lembrar de piedade, mais precisamente de todas as vezes que ele não teve isso. Uma terceira pessoa, um expectador externo, ao ver essa cena, seria bastante rápido em condená-lo pelo que estava fazendo, mas onde estavam esses condenadores anônimos quando ele precisou de ajuda? Agora na vez dele é que era errado? Não, definitivamente não. O que estava fazendo era absolutamente direito, era o SEU direito. Esses pensamentos lhe deram forças, e uma determinação que ele não imaginava ter, e quando ele viu já havia terminado os preparativos: dois rapazes do grupo de Marcos estavam deitados sobre o braço do sofá, com as costas arqueadas para cima formando um sinistro U invertido.

Imediatamente Ricardo ergueu o taco de beisebol acima da cabeça e começou a bater. Apenas bater. Com fúria, com ódio. Cada pensamento, cada lembrança lhe dava mais força e determinação. O atrito da madeira com suas mãos queimava, mas isso só lhe dava mais prazer ao imaginar que muito pior estariam os que estavam na outra extremidade do taco. Lembrou também que aqueles cretinos tinham notas pavorosas, mas que estavam em vias de conseguir uma bolsa de estudos esportiva em uma faculdade local. “Bem, não mais” ele pensou, com um sorriso inspirado e divino. Continuou golpeando, batendo com a força que tinha até seus braços absolutamente cansarem. Decorridos cinco minutos (chutou num cálculo mental, talvez fosse bem menos), observou satisfeito (e cansado) que o osso da coluna dos dois fazia uma forma estranha e bizarra sob a pele. É, aquilo iria ser suficiente, era hora de seguir em frente ... O prato principal...

O prato principal, o prato principal... Onde estava Marcos?

Olhou ao redor e não viu ninguém parecido com ele na sala. Viu, contudo, o pequeno Jigglypuff cego que havia comprado na internet, ainda entretido, cantando sozinho. Evitou olhar por mais de um instante, aquela figura sem olhos o perturbava profundamente, e ele não precisava de outros pensamentos agora. Precisava era achar Marcos... Quando ele achou algo muito mais valioso.

Amanda estava caída e dormia no tapete de lá como um anjo. Bem, talvez anjos não fossem tão bonitos. O que importa realmente é que ela estava particularmente linda essa noite, em seu vestido azul de cetim, semi-transparente em algumas partes, numa combinação tão encantadora de fofura e gostosura que até mesmo um soldado de Terracota se apaixonaria se olhasse por tempo demais, mesmo com a notável desvantagem de estar morto. Claro, tinha aquela coisa da calça pra dentro das botas que as gostosas sempre usam (deve ser um código que eles ensinam no clube das pessoas bonitas, vai saber), mas, fora isso, estava perfeita.

Entretanto, Ricardo não foi tomado por nenhum sentimento de paixão ou sublimação artística. Foi tomado apenas por... ódio e raiva.

Veja, Marcos era um idiota, um monstro, um animal. Mas era apenas isso, era um animal que fazia o que fazia porque era o que precisava fazer para ter garotas como ela. Era apenas um animal que seguia seus instintos, não é como se ele tivesse muita escolha sobre isso. É um fato da vida que, para ter garotas desse nível, você tem que ser um monstro sem coração, e usar quem preciso for da forma que possível for. Mas Marcos era apenas um lacaio, um capanga. Amanda era diferente.

Ela... E mulheres como ela sabem exatamente que tipo de pessoas são os canalhas pra quem elas dão. Elas têm total ciência disso e, mais importante ainda: têm total controle sobre isso. Bastava uma palavra dela e Marcos, ou qualquer outro candidato a macho alfa, não precisaria ferrar com a vida de ninguém apenas para se mostrar digno. APENAS UMA PALAVRA. Ela podia ter feito isso a qualquer momento, ELA PODIA TER PARADO ISSO A HORA QUE QUISESSE. Ela podia. Bastava apenas uma ordem. Ela podia, mas não quis.

Seu orgulho como fêmea exigia do macho que desejasse ejacular em suas entranhas (ou em sua garganta, dependendo do quão macho fosse) provasse constantemente que era o dono do território. O tempo todo, sem demonstrar fraquezas, sem demonstrar piedade ou consideração por outro ser humano (que são um tipo de fraqueza, afinal). Era apenas esse o comportamento que ela e garotas como ela exigem do seu macho favorito.

Não fosse por ela, e pelos caprichos dela, Ricardo ainda teria uma vida...

Levou menos de um segundo para ir até a sacola e voltar carregando um pequeno pote de vidro. Se abaixou até ela, inclinava-se pra ela. Tocou de leve sua bochecha e fechou os olhos, como faziam nos filmes. Sentiu os lábios macios e quentes dela, mas de alguma forma não foi exatamente tudo que ele sempre sonhou, tudo que ele sempre achou que seria. Na verdade não foi lá muito mágico, foi meio sem graça até.

Então era isso? Era por causa disso que a sua vida foi destruída? É por causa dessa porcariazinha que cogitou por anos cada forma de suicídio, por mais dolorosa que fosse, como prêmio absoluto? Para que alguém sentisse essa porcariazinha? Ah, mas era a gota d’água. Era só o que faltava MESMO! Agora chega, não tinha ido longe demais, não tinha sequer é começado! FILHA DA PUTA! VADIA! MISERÁVEIS! CRETINOS! FILHOS DA PUTA DESGRAÇADOS DO INFERNO! Agora eles iam ver!

Inclinou a cabeça da garota para trás, como ensinado no procedimento de RCP, o que fez com que ela ficasse com a boca bem aberta. Abriu então o pote de vidro, e despejou o líquido meio esverdeado sobre o rosto dela. Um vapor branco e fedorento ergueu-se, e quando ele olhou novamente, a carne do rosto estava completamente deformada, de forma que o fogo ficaria com inveja por jamais ser capaz de conseguir um resultado tão bom. Empolgado com o resultado da deformação que criara, derramou o resto do frasco sobre o corpo dela (sobretudo os seios e a genitália), e entornou novamente o restinho do frasco sobre o rosto dela de modo que um filme B de terror não faria maquiagem pior.

Atirou o frasco de ácido, agora vazio, para trás, e preparou o golpe de misericórdia: parou com os dois pés ao lado da cabeça dela, puxou o cinto da fivela, o arrancou com um movimento brusco, e logo fez o mesmo com a calça. Nu da cintura para baixo, se agachou sobre a cabeça de Amanda e então cagou. Cagou com força. Cagou firme. Cagou forte. Cagou muito.

Satisfeito (quando o estoque de tacos que havia comido nos preparativos acabara), ergueu-se e quase teve medo de olhar o resultado. Conseguiu acertar uma boa parte dentro da boca, não tudo, mas o suficiente para transbordar e cobrir de merda todo o rosto, e os recém-abertos ferimentos. Uma obra de arte de dar orgulho, se querem saber...

Aliviado, tanto espiritual quanto fisiologicamente, ergueu-se, ainda limpou a bunda com o vestido da garota, vestiu as calças, e decidiu prosseguir. Olhou mais uma vez ao redor, e dessa vez não viu o Jigglypuff sobre a mesa. Onde a coisinha havia ido? Pensou em tirar os fones para descobrir se a criatura ainda cantava, mas logo se deu conta que essa seria uma idéia profundamente estúpida. Decidiu apenas se apressar. Não sabia exatamente quanto tempo o efeito da canção duraria se o bicho tivesse parado de cantar.

Após uma rápida geral pela casa, finalmente encontrou Marcos, mas dessa vez a coisa teria que ser jogo rápido, sem direito a beijinho ou jantar a luz de velas. É, sim, seu humor estava ótimo, melhor do que em qualquer outro momento que ele conseguia se lembrar, finalmente estava... em paz. Uma rápida viagem de ida e volta a sua sacola e ele já estava pronto.

Levantou o rapaz que tinha quase duas vezes o seu tamanho, e três vezes a sua massa apenas em músculos. Com um certo esforço tirou as calças dele, e o colocou de bruços no chão com a bunda empinada, de forma que a câmera sobre a lareira tivesse um bom ângulo. Com tranqüilidade, e um prazer quase sexual, pegou o vibrador de 30cm, e mergulhou na lata de piche, para só então enfiá-lo com força no reto do seu antigo colega. Oh boy, o que era aquela sensação? Quem disse que a melhor sensação do mundo é amar e ser correspondido é porque nunca teve a oportunidade de enfiar um vibrador embebido em piche no ânus da pessoa que você odiou por anos e anos... Sentir as pregas do cu se rompendo uma a uma, o sangue escorrendo, a dor que ele sentiria quando acordasse... Aquela definitivamente foi a melhor sensação da sua vida, sem sombra de dúvida. Podia dizer que se morresse agora estaria satisfeito. Enfiou o objeto até ele desaparecer completamente, o que não foi tarefa fácil, ainda que extremamente gratificante, e desejou boa sorte aos que tentassem tirar ele dali. Ok, mentira, não desejou boa sorte.

Mas seu trabalho ali estava concluído. Havia, claro, mais o que gostaria de fazer, mas algo lhe dizia que esse era um tipo de tempo do qual ele não dispunha no momento. O Jigglypuff estava sumido, e aquelas pessoas podiam acordar a qualquer momento agora. Acendeu o isqueiro do bolso, e colocou fogo na cortina da sala, pegou sua sacola, a câmera, e saiu apressadamente.

Enquanto caminhava pelo quintal em direção à calçada, conectou a câmera ao seu celular, para uploadear o vídeo para o Metacafe (o YouTube baniria rápido demais), mas isso era apenas uma preocupação mundana perto de como ele se sentia no momento...

Dizer que havia tirado um peso do seu peito era um clichê batido e pequeno perto do que realmente sentia. A comparação mais correta seria dizer que sentia como se respirasse pela primeira vez na vida. Ricardo não fazia mais esforço em conter as lágrimas, ou gritar mesmo a plenos pulmões. Sentiu-se tão humano, tão vivo, como se a vida começasse do zero agora. Sentia-se assolada por sensações genuínas, contraditórias, dispersas, mas muito fortes...

Sua vida finalmente poderia começar agora, finalmente ele teria uma chance de apenas ser normal, deixar o passado para trás e ser ... TOMBO.

Ricardo sentiu o gosto pétreo do asfalto em sua boca misturado com o férreo do sangue dançando entre seus dentes. Havia tropeçado em alguma coisa e caído de boca no asfalto, sentiu com a ponta da língua que havia soltado alguns dentes na queda. Ao abrir os olhos, e procurar no que havia tropeçado, teria se cagado de medo se já não tivesse resolvido essa questão fisiológica há poucos minutos antes. A poucos centímetros da sua cabeça estava uma visão tão perturbadora quanto demoníaca. A iluminação pública da rua conferia um tom muito mais arroxeado e doentio à criatura, e o vazio no lugar dos olhos... como se sugassem a sua própria alma, jamais havia visto algo tão aterrador e apavorante tão de perto. Tomado por um pavor e perturbações sobrenaturais, rolou para longe daquela visão dantesca e profana o mais rápido que pôde, como se a corrupção de todo o mundo que recaiu sobre aquela criatura originalmente fofa e adorável agora devorasse suas tripas com fúria e rancor. Aquilo era desumano demais... até para ele.

Se afastou da criatura como pôde, rastejando em direção à rua.

E, apavorado que estava, não viu o caminhão se aproximando.

Ricardo não morreu após tropeçar na criatura mutilada e ser atropelado por um caminhão.

Mas também jamais se recuperou. Ricardo passou o resto de seus dias mantido por aparelhos no hospital, nem vivo nem morto. Sua família não permitiu que ele tivesse esse privilégio, morrer parecia ser bom demais para ele. Ele passou os próximos 70 anos enlouquecendo entre pensamentos, preso dentro de um corpo que não respondia, a mais cruel de todas as prisões, e infindáveis pesadelos sobre um perturbador monstro púrpura sem olhos...


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